Cities of translators São Paulo O trânsito entre popular e erudito.
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O trânsito entre popular e erudito.

O clarinetista Luca Raele em entrevista

Quem toca em um quinteto de clarinetas, formação pouco ortodoxa, com escasso repertório original, obrigatoriamente executa arranjos de repertório concebido originalmente para outro tipo de grupo. E para Luca Raele, membro do Sujeito a Guincho, e autor de todos os arranjos do miniconcerto que celebra este Colóquio, arranjar é traduzir, com todas as implicações entre escolhas “literais” e “livres” que envolvem a tradução literária.

Músico completo, com uma trajetória que torna a borrar as difusas fronteiras entre o “popular” e o “erudito”, Raele tocou em algumas das principais orquestras sinfônicas brasileiras, em um grupo cult da cena musical das décadas de 1980 e 1990, o Nouvelle Cuisine e, como sócio da gravadora ybmusic, compôs trilhas sonoras para filmes como A Mulher Invisível, O Homem do Futuro, Redentor e outros, além de séries como Magnífica 70 (HBO), Reality Z (NetFlix) e Missões de Vida (HBO). Nessa entrevista, ele fala um pouco de seu trabalho, e explica as escolhas tradutórias que orientaram cada um dos seis arranjos que constituem o miniconcerto do Sujeito a Guincho com Mônica Salmaso realizado para o projeto Cities of Translators – São Paulo, formando uma espécie de guia comentado de audição.

 

Irineu Franco Perpétuo: Como surgiu o Sujeito a Guincho? Por que o grupo tem esse nome? Esse nome implica em compromisso especial do grupo com o humor? Qual a situação do clarinete no Brasil e sua posição na música brasileira?

Luca Raele: Em 1991, Sérgio Burgani e Edmilson Nery atuavam como clarinetistas na OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo). Luís Afonso “Montanha” e eu tocávamos na Orquestra Jazz Sinfônica, e também na OSM (Orquestra Sinfônica Municipal). Montanha havia sido aluno de Sérgio. Foi ideia de Sérgio Burgani nos convidar para encontros aos sábados de manhã, para conversar sobre a clarineta e suas vicissitudes, além de tocar o repertório existente para quarteto de clarinetas. Mais tarde (1996), Nivaldo Orsi se uniu ao grupo, e assumimos o formato quinteto. O nome foi sugerido por Burgani, um bom achado, devido ao duplo sentido da palavra “guincho”, que aparece em placas de “proibido estacionar: sujeito a guincho”, e também é o som muito agudo produzido pela clarineta quando nos defrontamos com imprevisíveis “acidentes” técnicos. Não há, entretanto, um compromisso explícito do grupo com o humor. Um quinteto de clarinetas não é um típico representante da tradição camerística, como um quarteto de cordas, por exemplo. A clarineta é um instrumento muito versátil, presente em diversas manifestações da música popular de muitos países, notadamente o choro, o frevo, o samba e o jazz. No Brasil inexiste o hábito de frequentar recitais de câmara, e, mesmo havendo milhares de pessoas extremamente receptivas a todo tipo de música, as entidades culturais teimam em oferecer esses produtos de forma exclusiva aos mesmos minguados extratos da elite, ignorando um gigantesco mercado potencial. Estas condições levaram o grupo a assumir uma postura menos formal do que seria esperado num recital de câmara, fornecendo informações sobre o repertório durante a apresentação, e montando programas que incluem peças de qualquer período histórico junto a versões camerísticas de temas da música dita “popular”. A própria formação do grupo obriga a produzir arranjos, transcrições, reelaborações, que podem ser virtualmente de qualquer tipo de música.

Grupo Sujeito a Guincho, do qual Luca Raele é integrante

Toda sua trajetória musical transita entre as fronteiras do popular e do erudito. Como você vê a divisão entre esses dois mundos?

Procuro ver mais as possibilidades de união, que, para mim, são muito enriquecedoras para os dois mundos. Tenho a opinião de que não há motivo racional que impeça uma profunda interação que, no limite, pode levar à impossibilidade de uso de rótulos. Assim como é fácil imaginar ouvintes fruindo música de ambas esferas com o mesmo prazer, não vejo por que o artista não possa expandir seu universo, e isso acontece bastante já. Acho que o que resta dessa divisão é bastante marcado por um componente social, uma impressão de pompa que ainda cerca a música de concerto. Não há razão, por exemplo, para o uso de casaca numa apresentação. São hábitos e vícios do final do século XIX. Outro exemplo: a proibição do aplauso após um movimento, numa sinfonia ou sonata, etc., quando claramente foram compostos para provocar o aplauso, e realmente eram aplaudidas à época. Hábitos estranhos à maioria da população que é ávida por arte, mas sente-se excluída ao deparar-se com formalidades sem sentido. Vejo como indispensável a promoção da inclusão, tanto do público (socialmente) como do artista (esteticamente).

 

Neste concerto, o Sujeito a Guincho tem como parceira a cantora Mônica Salmaso. Como você a definiria?

Mônica é uma artista que preza essa inclusão. Prova disso é o fato de ter convidado o Sujeito a Guincho, em 2003, para um show conjunto. Uma cantora que tem a exata noção do que é ser instrumentista, sendo capaz de usar sua voz realmente como instrumento. Dona de musicalidade imensa: intui com facilidade o peso ideal de cada fragmento de frase; é livre de vícios ou maneirismos; mantem-se segura e independente, seja na condução de sua carreira, seja ao integrar-se numa formação camerística, atuando junto a um acompanhamento mais complexo do que seria habitual. Como se não bastasse, possui timbre e afinação raríssimos.

A cantora Mônica Salmaso. Foto de Lorena Dini

Qual o conceito geral dessa apresentação do Sujeito a Guincho com Mônica Salmaso? Como foi montado o repertório? Faça, por favor, um breve comentário, na ordem de execução, sobre cada uma das canções incluídas.

Esta parceria começou em 2003, a convite de Mônica. Desde então, fomos adicionando novos arranjos, sempre a partir de predileções e propostas que surgiam a cada momento de uma nova apresentação. Hoje dispomos de pelo menos quinze arranjos, dos quais seis foram escolhidos para o projeto Cities of Translators – São Paulo. Em sua maioria, clássicos da música popular brasileira, mas não só. De certa maneira, é uma reunião muito singular: aquilo que é próprio da escrita e execução camerística (liberdade textural - polifonia/homofonia/monodia, jogo de densidades, trabalho dinâmico detalhado, cuidado timbrístico, uso de recursos técnicos variados) é mantido, mas aplicado ao repertório da música popular, sem que se perca a essência de cada canção. Os arranjos são diferentes entre si, podendo aparecer como meras transcrições do original, ou como reelaborações livremente criadas.

Realejo (Chico Buarque) foi gravada em 1967 para o LP Chico Buarque Vol. 2. A tradição, já à época abandonada, do uso do realejo com um periquito tirando a sorte para os passantes, é nostalgicamente relembrada. O autor se coloca como um vendedor do realejo, que ninguém mais quer comprar. Na gravação original ouvimos três flautas que assumem o papel do realejo. Em nosso caso, o quinteto de clarinetas representa um realejo “antropomorfizado”, que aproveita os espaços entre os versos para mostrar suas qualidades, às vezes em relação direta com a letra, por exemplo: “valsa encantadora” e “arpejo”. Uma introdução instrumental apresenta temas típicos de realejo, seja em ritmo de marcha, polca ou valsa, e retorna ao final. Às vezes o quinteto se comporta como se fosse um cachorrinho abanando o rabo, tentando se vender com figuras e harmonias coloridas. Mas ao final de cada estrofe, a pergunta: “Quem vai levar?” fica sem resposta, e o quinteto lamenta tristemente. Inadvertidamente, num desses momentos, um pequeno trecho do prelúdio de Tristão e Isolda (Richard Wagner) foi usado, sem outro motivo que sua própria beleza. Este arranjo é um caso de “tradução livre”, em que uma narrativa instrumental corre paralela ao canto, tendendo à independência, mas sem perder o caráter de base para a canção.

João Ninguém (Noel Rosa) foi gravada em 1935 pelo autor e um conjunto regional típico de choro: flauta, violões, cavaquinho e pandeiro. Um dos violonistas executa belíssimos contracantos, comentários melódicos e breques improvisados (como se fossem pequenas cadenze). Ao pensar no arranjo, decidi aproveitar ao máximo esse trabalho, fazendo uma transcrição o mais fiel possível. É um dos arranjos mais “literais”, sempre considerando que um quinteto de clarinetas nada tem em comum com o conjunto original, principalmente no que se refere à base rítmica.

Modinha (Tom Jobim / Vinícius de Moraes), gravada em 1958 por Elizeth Cardoso e no ano seguinte por Lenita Bruno, já na origem se mostra mais um lied que uma canção popular. Os dois arranjos citados são puramente orquestrais, remetendo-nos a Villa-Lobos, ou também ao Gershwin de Porgy & Bess. Na “tradução” para quinteto de clarinetas, senti que Mônica poderia simplesmente cantar essa lindíssima melodia com o mínimo de intervenção dos clarinetes, apenas o necessário para situar a harmonia subjacente. O arranjo é baseado na contraposição entre linhas de variados tamanhos e blocos (ou massas), isolados por silêncios. Num intermezzo instrumental vence a polifonia. Ao retornar a voz, blocos harmônicos acabam por se organizar em linhas de blocos, findando em pontos uníssonos (perdoem o momento geométrico). É um arranjo que preserva a melodia e harmonia da canção, mas se distancia muito dos arranjos originais, colocando-se como o oposto do anterior, João Ninguém, do ponto de vista da literalidade.

Cidade Lagoa (Cícero Nunes / Sebastião Fonseca), gravada em 1959 por Moreira da Silva, é um choro sinuoso e irônico que comenta o problema das enchentes no Rio de Janeiro. O nosso arranjo é descritivo e antecedido por uma introdução também irônica: o quinteto apresenta a música completa, porém mudando de tom, de solista e de textura de base a cada quatro compassos. A voz apresenta o tema, acompanhada por um só clarinete que improvisa a base. Então se inicia um tipo de “mickeymousing”, ou foto-legenda, em que vários momentos da letra são comentados musicalmente pelo grupo. Ouvimos a enchente crescer, a chuva cair, a cachoeira, a lancha (com motor em frulatti), “tudo enguiça”, o trânsito engarrafado com sirenes, a água subindo até o pescoço, a girafa, e alguns clarinetes remando numa canoa em ritmo ternário, contra o binário do choro. Um tipo diferente de tradução literal, neste caso, apenas da letra da canção.

Sinal Fechado (Paulinho da Viola), gravada em 1969, é uma das composições mais singulares da música brasileira. Paulinho pôs em música um coloquial diálogo entre amigos, cada um em seu automóvel, durante uma parada de semáforo. Uma linha de base ao violão, obstinada e tensa, reflete a vida num país sob a ditadura militar, enquanto o diálogo acontece num ritmo de recitativo, aparentando total independência em relação ao acompanhamento. O arranjo orquestral amplifica a sensação de preocupação subjacente à conversa, permeada pela tristeza dos personagens. Esta é mais uma canção “popular” que poderia ser um lied e, talvez por isso, o arranjo para quinteto de clarinetas seja uma transcrição do arranjo original, a mais literal possível, nesta instrumentação completamente diferente. Noto aqui que duas canções que comparo a lieder recebem tratamentos opostos, algo que só posso explicar por decisão intuitiva, ou seja, sem explicar.

Grade (partitura) do arranjo de Sinal Fechado (Paulinho da Viola) feito por Luca Raele

Baião de 4 Toques (José Miguel Wisnik / Luiz Tatit) foi gravada em 2003, como um autêntico baião, com sanfona, zabumba, triângulo, etc. Os quatro toques se referem ao motivo básico da Sinfonia n. 5, de Beethoven, cuja rítmica se adapta perfeitamente ao estilo melódico comum aos baiões. O arranjo para clarinetas é uma tentativa de intensificar esta simbiose: alternam-se a base de baião e momentos pinçados das sinfonias 3, 5, 7 e 9 de Beethoven (o fato de serem ímpares é puramente ocasional). Uma introdução, retirada do finale da quinta sinfonia, desemboca no esqueleto/base do finale da terceira (Variações Eroica), sobre o qual ouvimos a melodia do segundo movimento da sétima, e assim por diante, propiciando um divertimento aos ouvintes, qual Onde está Wally?, sendo Wally diversos fragmentos beethovenianos. Ao final da primeira exposição do tema, uma frase que usei para o clarone me remeteu a Fon-Fon, composto por Ernesto Nazareth. Num rompante de aproveitamento da livre associação, decidi incorporar Fon-Fon ao intermezzo instrumental, à época (2005) desprovido de justificativa suficiente. Hoje aceito a decisão de meu inconsciente com a ajuda do conto Um Homem Célebre, de Machado de Assis. Ernesto Nazareth, genial pianista e compositor contemporâneo de Machado, de certa maneira poderia ser o personagem do conto, ávido por compor sonatas ao modo clássico, mas muito bem sucedido como criador de polcas populares. Pensando em tradução, poderíamos, talvez, imaginar uma tradução “hiperbolizada e variante” (perdoem o momento estapafúrdio da entrevista).

 

Você assina todos os arranjos desta apresentação. Já foi também o autor de várias trilhas sonoras para filmes e séries de televisão. Como você divide sua carreira entre intérprete, arranjador e compositor?

Difícil dizer. Para mim sempre pareceu estranha a noção de “carreira”, no sentido de determinação prévia do que fazer com a profissão. Então, tenho prazer tocando e também criando, escrevendo, etc., e vou atendendo às demandas, tanto às minhas próprias, quanto às que surgem no caminho.

 

Antes de criar o Sujeito a Guincho, você surgiu na cena musical brasileira com um grupo que causou furor à época, o Nouvelle Cuisine. Fale um pouco dessa experiência.

O Nouvelle Cuisine foi um grupo de amigos que surgiu em 1987, formado originalmente por Guga Stroeter (vibrafone e bateria), Maurício Tagliari (guitarra e violão), Flávio Mancini (contrabaixo) e Carlos Fernando Nogueira (voz), e eu (clarineta e piano). A intenção original era de voltar a se divertir tocando jazz, em meio a um período de depressão econômica em que não havia como tocar em lugar algum. A combinação de predileções levou a um produto raro à época no Brasil: arranjos econômicos e criativos de standards muito bem cantados por Carlos Fernando, usando sonoridade acústica. Obras de Gershwin, Ellington, Rodgers/Hart, Berlin, etc, receberam tratamentos pouco usuais, com riqueza de referências, pouco apelo ao virtuosismo, cuidado com dinâmica e combinações timbrísticas. Um inesperado interesse do público levou a WEA a nos contratar para dois discos, em seguida gravamos outro para a Gravadora Eldorado, e mais tarde, um último pela ybmusic. Depois de alguns anos, a formação sofreu algumas alterações, com a participação de Marinho Andreotti (baixo), Giba Favery, Guilherme Kastrup e Rogério Boccato (bateria/percussão), e Estela Cassilatti (voz).


Irineu Franco Perpetuo é jornalista e tradutor. Foi colaborador da Revista Concerto e jurado do programa Prelúdio, da TV Cultura. Coautor, com Alexandre Pavan, de Populares & Eruditos (2001), e autor de Cyro Pereira – Maestro (2005), História Concisa da Música Clássica Brasileira (2018) e dos audiolivros História da Música Clássica (2008), Alma Brasileira: A Trajetória de Villa-Lobos (2011) e Chopin: O Poeta do Piano (2012). Traduziu, diretamente do russo,  Pequenas Tragédias (2006), Boris Godunov (2007), A Dama de Espadas e A Filha do Capitão (2019), de Púchkin, A Morte de Ivan Ilitch (2016), de Tolstói, Memórias do Subsolo (2016), de Dostoiévski e Vida e Destino (segundo lugar no Prêmio Jabuti 2015), entre muitos outros. Participou do grupo de cinco tradutores que verteram Arquipélago Gulag, de Aleksandr Soljenítsyn (2019). Suas traduções mais recentes, no prelo, são Anna Kariênina e Guerra e Paz, de Tolstói, e Meninas, de Ludmila Ulítskaia.

Luca Raele é clarinetista, pianista, arranjador e compositor. Entre 1990 e 1995, integrou a Orquestra Sinfônica Municipal e a Jazz Sinfônica. A partir de 1987, participou do grupo Nouvelle Cuisine (prêmios Sharp e APCA) e, desde 1991, do conjunto de clarinetas Sujeito a Guincho (Prêmio Eldorado de Música e Sharp). Com o Sujeito a Guincho obteve reconhecimento internacional através de apresentações no Clarinetfest (organizado nos EUA) em 1997, 1998 e 2001; em Washington e Miami (Broward Center), com Mônica Salmaso, em 2006; e no Conservatório Tchaikovski em Moscou, em 2008. Em julho de 2004, integrou o World Clarinet Quartet, no Traumzeit Festival em Duisburg, Alemanha.  Em gravações ou concertos, atuou junto a artistas e grupos como o Quarteto Guarnieri, Quarteto de Cordas Municipal (SP), Orquestra Experimental de Repertório, Mônica Salmaso, Nelson Ayres, Paulinho da Viola, André Mehmari, Marisa Monte, entre outros. Compôs trilhas sonoras para filmes como A Mulher Invisível, O Homem do Futuro, Redentor e outros, além de séries como Magnífica 70 (HBO), Reality Z (Netflix) e Missões de Vida (HBO).

 

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