Cities of translators São Paulo "Muito do que traduzimos partia da ideia de traduzir o aparentemente intraduzível"
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"Muito do que traduzimos partia da ideia de traduzir o aparentemente intraduzível"

Augusto de Campos em entrevista

Augusto de Campos ao lado de uma versão do seu poema “cidade/cit/cité”. Foto de Lew Perrella, 1986.

SIMONE HOMEM DE MELLO: Augusto, entre os poetas do Grupo Noigandres, cuja formação em 1952 representa um dos marcos fundadores da Poesia Concreta, você foi o que mais experimentou com o suporte da poesia, não só produzindo obras que jogam com a tridimensionalidade – como Linguaviagem (cubepoem, 1967), Poemóbiles (1968-1974), Caixa Preta (1975) –, mas também gerando novos espaços para a palavra, em hologramas e versões de poemas para o espaço público, por exemplo. Se no texto introdutório ao ciclo de poemas Poetamenos (1953) você exclamava "mas luminosos, ou filmletras, quem os tivera!", isso de fato se cumpriria posteriormente, quando seus poemas viriam a ser projetados em edifícios de São Paulo. Se você dispusesse, nos anos 1950 e 1960, dos recursos materiais e de toda tecnologia que temos hoje, será que teria feito intervenções urbanas? Você chegou a pensar em projetos para o espaço urbano que não puderam ser realizados, como os arquitetos expressionistas com seus projetos utópicos? Como você descreveria a relação da sua poesia com a cidade, o seu interesse em explorar o espaço urbano como lugar da poesia, a sua satisfação em ver poemas ultrapassarem o limite do livro?

 

AUGUSTO DE CAMPOS: Sim, como evidencia a frase que você menciona da introdução que escrevi para os poemas em cores de Poetamenos, a princípio compostos em simples máquina de escrever, com o precário uso de papeis carbonos coloridos, eu pensava em ver poemas expostos em grandes dimensões no espaço urbano. Mas não  tendo qualquer esperança de obter os meios para tanto, aos 22 anos, sem contatos que pudessem viabilizar qualquer projeto nesse sentido, fiquei “aspirando à esperança”, que de fato, muitos anos depois, se iria realizar de formas diversas em várias oportunidades com mais de um dos meus trabalhos. O poema “cidadecitycité”, de 1963, abriu caminho para isso.  Em 1987 foi instalado por Julio Plaza em grandes letras de madeira pintadas em vermelho, por cerca de 80 m, na fachada do edifício da Bienal de São Paulo, como parte do evento “Trama do Gosto”.

Augusto de Campos diante do edifício da Bienal de São Paulo, com o poema “cidade” na fachada, em versão de Julio Plaza, 1987 (Foto: Lygia de Azeredo Campos)

Foram muitas as outras intervenções citadinas, como a do poema “Quasar”, apresentado em 1982, num painel luminoso do Anhangabaú (Projeto Arte Acesa, organizado por Julio Plaza). Em 1991, tive poemas projetados em laser  na Avenida Paulista: “Poesia É Risco”, “Rever”, “Tygre de Blake” (os dois primeiros, também oralizados). Em 2011, poemas como o “TUDO ESTÁ DITO”, apareceram em videoprojeções (videomapping) de imagens em fachada de edifício no Rio de Janeiro. Na exposição REVER (2016), voltou o “cidade” em luminoso e sonoro, na entrada da mostra, em espaço aberto. O “VIVA VAIA” virou um “outdoor” de rua, em Vitória, capital do Espírito Santo, este ano.

 

Augusto de Campos: “VIVA VAIA”, outdoor em Vitória, outubro de 2020

 

Não vejo o livro como um limite. Tenho muito apreço pelo veículo impresso e continuo publicando meus trabalhos usando o papel tradicional, reanimado pelas facilidades da impressão digital. Mas entendo que a comunicação visual, com os novos recursos tecnológicos e ambientes como o da internet, abre enormes áreas de informação e difusão que complementam e ampliam a veiculação da matéria literária em todas as suas dimensões. Não se trata apenas de um problema de satisfação mas de necessidade. Alegra-me o fato de que a questão da comunicação poética tenha dado razão às profecias de Mallarmé e das vanguardas do século XX, e, no que me diz respeito, às intervenções da poesia concreta, que enfrentaram, em seu tempo, tanta resistência e tanta incompreensão.

Augusto de Campos: “Tudo está dito”, Projeto Fachadas, 2011
 

Eu pediria que você contasse um pouco sobre o ambiente cultural de São Paulo nos anos 1950, do qual você, Haroldo e Décio participaram e com o qual contribuíram, ao qual também pertenciam, por exemplo, o círculo de artistas plásticos engajados na pintura concreta e a Escola Livre de Música, cofundada por Hans-Joachim Koellreutter. Muito cedo, os seus poemas foram oralizados em apresentações no Teatro de Arena e no Teatro Brasileiro de Comédia e expostos no Museu de Arte Moderna, por ocasião da Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956. O que esta cidade proporcionava a vocês, jovens de vinte e poucos anos naquela época?

O fim da segunda grande guerra, em 1945, trouxe uma grande euforia civilizatória que repercutiu também enormemente no Brasil, com a restituição do país aos quadros democráticos. Em São Paulo, criaram-se em 1947 e 1949 o Museu de Arte de São Paulo (MASP) e o Museu de Arte Moderna (MAM) e a Bienal de São Paulo (1951), cujas atividades de reintegração e atualização cultural são notórias. No MAM foi fundamental a criação da Cinemateca, que nos proporcionou o conhecimento de tudo o que era cinema de arte tanto histórico quanto o mais avançado. As aulas de Koellreutter na Escola Livre de Música, que funcionava na Rua Sergipe, nos forneciam conhecimentos teóricos e práticos sobre as novas tendências,  a música concreta e eletrônica, assim como, em relação à literatura e às artes, as livrarias importadoras instaladas no centro da cidade e que tiveram seu auge entre 1950 e 1960. Entre outras, a Livraria Francesa, criada desde 1947, a Pioneira, especializada em livros de língua inglesa, a Loja do Livro Italiano, as cosmopolitas Kosmos e Parthenon.  A Livraria Duas Cidades, instalada na região central em 1967, foi a editora das primeiras antologias individuais da poesia  de Décio Pignatari e da minha, assim como a da Teoria da Poesia Concreta, nos anos 1970.


Pavilhão temporário da primeira Bienal de São Paulo na Esplanada do Trianon, Avenida Paulista © Autor não identificado
 

 

Já em 1952, na Stradivarius, no centro da cidade, pequena loja de discos dirigida por Nagib Elchmer, aluno de Koellreutter, adquirimos os primeiros LPs de Schönberg, Webern, Berg, Varèse, Cage e outros. Nesse mesmo ano acontecia a exposição de artistas concretos, Ruptura, com o manifesto e as obras dos pioneiros  da arte geométrica no país, Waldemar Cordeiro, Geraldo de Barros, Kazmer Fejer, Sacilotto, e saía  também o primeiro número da antologia Noigandres. O contato entre os dois grupos foi instintivo e instantâneo e gestou os espetáculos do Teatro de Arena, de “poesia e música concretas”, em 1955, com as apresentações de poemas da série Poetamenos e leitura de um pequeno manifesto meu, “Poesia Concreta”. A 1a exposição  Nacional de Arte Concreta ocorreria em dezembro de 1956, no MAM de São Paulo, transferida em fevereiro do ano seguinte para o saguão do Ministério da Educação no Rio de Janeiro, com enorme repercussão.

 

1ª Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo © Autor não identificado

 

A associação do Grupo Noigandres a São Paulo é tão marcante que Caetano Veloso se refere, em "Sampa" (1968), à "poesia concreta de tuas esquinas" e aos "poetas de campos e espaços". Ou seja, desde cedo, vocês faziam parte do patrimônio imaterial da cidade... E por mais paulista(na) que seja a origem da vanguarda literária concreta, a sua atuação sempre foi no sentido de abolir os provincianismos e as fronteiras de tempos e espaços. O quanto você acha que a São Paulo multicultural na virada dos anos 1920 para os anos 1930, época em que vocês nasceram, contribuiu para esse cosmopolitismo? Como vocês conseguiram estabelecer contatos tão amplos com a Europa e os Estados Unidos, tiveram acesso a tantos livros e tantas referências numa época em que as possibilidades técnicas de comunicação eram bem mais restritas? Afinal, durante parte da infância e adolescência de vocês, o Brasil estava bastante apartado de uma Europa em guerra... Será que a escassez de relações com a Europa durante a Segunda Guerra deixou vocês ainda mais ávidos para estabelecer contatos? Afinal, os autores e as tradições que vocês escolheram como referenciais do programa da Poesia Concreta não foram todos herdados do modernismo brasileiro dos anos 1920.

A época da nossa adolescência coincidiu com o fim da segunda grande guerra. Pertencíamos à classe média. Haroldo e eu estudamos o Colégio São  Bento, onde se ensinava, desde o primeiro ano ginasial, francês, inglês e latim, e nos últimos espanhol. Décio estudava no Mackenzie, onde meu pai também estudou, e era de alto nível também o ensino naquele estabelecimento escolar. Lembro-me de Décio, em nossos primeiros encontros em nossa casa, na Rua Cândido Espinheira, 635, no bairro das Perdizes, para a qual vinha de trem, de Osasco, então subúrbio, a entrar declamando “Annabel Lee”, de Poe, no original… Quase todos os jornais tinham amplas seções literárias, destacando-se em minha lembrança o suplemento literário do Diário de São Paulo, dirigido por Geraldo Ferraz, ex-companheiro do movimento “antropófago”, de Oswald de Andrade, com ampla colaboração de Patricia Galvão, que até  um trecho  de Ulysses de James Joyce traduziria, como relatei na biografia literária Pagu — Vida- Obra. Era famoso o tabloide de A Manhã, do Rio de Janeiro. Também se faziam muito presentes as páginas literárias do jornal O Estado de São Paulo, onde pontificava o crítico literário Sergio Milliet, e o Diario Carioca, que recebia longas resenhas de Sergio Buarque de Holanda. Ambos relacionados com o modernismo brasileiro, e que dialogaram, com maior ou menor profundidade, com os nossos primeiros livros de poemas. Em 1949, levados por Mario da Silva Brito, futuro importante historiador do Modernismo brasileiro, viemos a conhecer Oswald de Andrade, que, entusiasmado com o contato com os jovens poetas, nos presenteou, a cada um, com raros exemplares da edição de luxo, de apenas 200 exemplares, de Poesias Reunidas O. Andrade (1945), e a mim e Haroldo, com a dedicatória “aos irmãos Campos, firma de poesia”, um ainda mais raro exemplar da primeira edição de seu romance experimental Serafim Ponte Grande (1933). Não foi pequeno, portanto, o nosso contato com os antecessores modernistas de nosso país, sem contar que Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto, embora distanciados num primeiro momento, por se encontrarem no exterior, tornaram-se mais adiante muito próximos de nós. Também Manuel Bandeira e Jorge de Lima se revelaram tocados pela poesia dos “Noigandres”. Apenas Drummond mostrou hostilidade, embora Claro Enigma, publicado após as inovações linguísticas dos “concretos“, evidenciasse que a sua poesia havia sido afetada pela nossa. Nossa preferência referencial a Oswald e João Cabral pode ter contribuído para sua aparente má vontade…

Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Augusto de Campos nos anos 1950

Mas o fato é que o Brasil entrara numa fase notoriamente desenvolvimentista, sob a presidência esclarecida de Juscelino Kubitschek, e o emblema desse novo momento de euforia está estampado na fundação de Brasília, sob a égide modernizante de Oscar Niemeyer e Lucio Costa, e à qual homenageamos com a adoção do termo “Plano Piloto” em nosso manifesto de 1958. Com as informações que obtivemos desde os primeiros anos 1950 e com os conhecimentos que fomos adquirindo, nos propusemos um programa, sem dúvida ambicioso, de contribuir com algo novo para a poesia universal, e não apenas nacional. Contatos com Eugen Gomringer e os poetas visuais da área de língua alemã, como Hansjörg Meyer, e também com Ezra Pound, E. E. Cummings, Pierre Boulez, Michel Butor, os escoceses Ian Hamilton Finlay e Edwin Morgan, os americanos Mary Ellen Solt, Emmett Williams e Dick Higgins, os dois últimos ligados também ao grupo Fluxus, John Cage, Louis Zukofsky, Kitasono Katsue e os poetas japoneses da revista Vou, mais os grandes críticos Roman Jakobson, Max Bense e Umberto Eco, para só citar alguns dos nomes mais eminentes, criaram um diálogo internacional de grande intensidade e significação, como pode ser verificado das várias antologias e exposições de poesia concreta que intercorreram especialmente nas décadas de 1950, 1960 e 1970.


O prédio do Congresso Nacional em obras no final dos anos 1950: palácio assinado por Niemayer.

Após muitos preconceitos e obstáculos, a “poesia concreta” vem retomando crescentemente o seu lugar na história da literatura e nas artes de nossos tempos, num universo de comunicação tecnológica, onde o visual e o auditivo adquiriram lugar privilegiado, e que, até certo ponto, foi intuído pelas pesquisas que praticamos com outros poetas que compartilharam conosco daquele primeiro momento de atuação. No Brasil, a experiência concreta teve e continua a ter, como se pode facilmente constatar, enorme repercussão, com adesões e confrontos, que até hoje não se pacificaram. Os “concretos”, vistos, equivocadamente,  como “racionais e desumanos”, encontram muita resistência ainda em áreas de poesia espontaneísta e de pouca espessura cultural.

 

Na sua introdução à reedição da Revista de Antropofagia de 1976, você afirmou que a “antropofagia” seria “a única filosofia original brasileira e, sob alguns aspectos, o mais radical dos movimentos artísticos que produzimos”. Além disso, acho que você também foi o primeiro a associar explicitamente a tradução-arte, conforme praticada pelos poetas do grupo Noigandres desde os anos 1950, à "Lei Antropofágica de Oswald de Andrade" (no prefácio de Verso, Reverso, Controverso, de 1978). Como você descreveria as convergências da vanguarda concreta com a Antropofagia oswaldiana? E o que distingue ambas? Pergunto isso porque, internacionalmente, os acadêmicos de Estudos da Tradução tendem a igualar, como se fosse a mesma coisa, a Antropofagia à teoria da transcriação, desenvolvida por Haroldo a partir da poética e da prática da tradução do Grupo Noigandres, e cooptar ambas para um modelo tradutório pós-colonialista.

Edição fac-similar da “Revista de Antropofagia” (1928-29), pela Editora Abril / Metal Leve, com introdução da Augusto de Campos (1975)

Do ponto de vista filosófico, embora esteja eu a invadir seara alheia, volto a afirmar que,  sem demérito para os nossos estudos filosóficos, que considero de alto nível, nada há no Brasil que possa competir com os filosofemas não-ortodoxos da lavra de Oswald em seus manifestos e teses. Temos excelentes especialistas em filosofia clássica e moderna, mas nenhuma filosofia com características próprias, talvez pela própria situação político-social incipiente e  ainda engatinhante do nosso gigantesco país em território e população, situação essa que acaba desviando os nossos “filósofos” para intervenções acadêmicas ou didáticas. Apoiado numa equação filosófica inédita que tomou como base da sua metafórica “antropofagia” — Nietzsche, Bachofen, Marx e Freud —, tomados como um ideograma do que pretendia como uma sociedade tecnológica, matriarcal e sem classes, Oswald deu uma configuração particular made in Brazil para um horizonte utópico que, embora pareça cada vez mais distante de nossas perspectivas, configura  ainda uma postulação ideológica criativa e  generosa que alimenta nossos sonhos de um mundo mais humano e mais justo. Valéry chegou a dizer, em um de seus Cadernos, “preciso de um alemão para completar minhas ideias”… Oswald pode ter precisado de mais de um ou dois, mas soube degluti-los sub specie poética, reuni-los e sintetizá-los numa equação que não me parece ter envelhecido, ainda que a nossa intelligentsia acadêmica continue a mantê-lo entre parênteses, dando preferência ao pensador europeu da moda, e resista à linguagem desaforada dos textos oswaldianos. A aplicação de conceitos da “antropofagia” à tradução, metáfora da metáfora, combina com a ideia da recriação poética, de assimilar as virtudes do traduzido ou “deglutido”, e não apenas trombar com ele…

 

Talvez a maior manifestação de cosmopolitismo da poesia concreta brasileira tenha sido a incorporação da tradução como parte integrante do seu programa poético – algo inicialmente inspirado em Ezra Pound. Analogamente ao make it new poundiano, vocês criaram em língua portuguesa do Brasil – como tradutores de várias línguas – um novo cânon do que você denomina "literatura de invenção", desde a antiguidade até a poesia contemporânea, resgatando autores que vocês consideravam relevantes para as causas literárias do presente. Como era, de modo geral, a prática vigente de tradução de poesia contra a qual vocês se voltavam com a sua proposta de tradução-arte? O que a tradução-arte, como você sempre a denominou, ou a transcriação, para usar um conceito de Haroldo, trouxe de novo para a tradição de literatura traduzida no Brasil?

 

Com raras exceções, dentre as quais sobressai, entre nós, o caso de um poeta menor do nosso modernismo, Guilherme de Almeida em momentos mais significativos, as traduções não eram vistas, em geral, como peças criativas, como o haviam sido em outras épocas. A partir das teorias e práticas poundianas, que constituíam o tradutor como “persona”, realçando a assimilação transmigratória de alguns textos vertidos para outras línguas, começamos a pensar na tradução como arte. Jakobson e Benjamin reforçaram teoricamente a proposta. Cujas premissas levam a uma concepção rigorosa da tradução. Só traduzir aquilo que se sustenta pelos próprios pés, como alta poesia na língua de chegada. O que permitiu se falar em “transcriação”, “tradução-arte”, “transdução”. Muito do que traduzimos partia da ideia de traduzir o aparentemente intraduzível, que era especialmente a poesia de invenção, a que trabalhava nas entranhas da linguagem, desde a poesia de um Arnaut Daniel até a poesia dos vanguardistas mais radicais como Mallarmé, Pound, Joyce, Cummings, Stein, Schwitters. Depois, fomos abrindo para outros grandes criadores, os “mestres”, na categorização de Pound. Sugerindo pensar em poesia “sem repetir”, como queria Duchamp. Ou melhor. Sem repetir para pior. Não desmereço a tradução literal, especialmente a de teor analítico e crítico, que nos instrui sobre o idioma, a linguagem, o estilo e o contexto. Sem ela eu não poderia traduzir Arnaut. O que procuramos demonstrar é que sobre as literais, de evidente utilidade, há as que chegam a reviver o original em outro idioma. Podem-se ensinar as técnicas. Mas o resultado depende de algum dom imponderável que tem várias gradações. Máxima quando se tem Janis Joplin interpretando o clássico “Summertime” de Gershwin e levando a canção aos píncaros. Fitzgerald traduzindo Omar. Pound, Rihaku.

Mallarmé traduzido por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Editora Perspectiva, 1973. Capa de D. Pignatari e M. C. Machado de Barros.
 

Acho interessante observar o quão intraduzíveis são, às vezes, certas tradições literárias. A poesia concreta, por exemplo, se tornou um movimento internacional em um curto espaço de tempo, mas me parece que as tradições líricas locais falam mais alto do que as propostas em comum. A poesia concreta brasileira, por exemplo, é bastante diferente da de língua alemã. Algo também intraduzível é a obra tradutória que você, o Haroldo e o Décio produziram, pois só quem sabe português poderá apreciar essas traduções, que funcionam elas mesmas como originais. Por mais que a teorização haroldiana sobre a transcriação seja um tema presente hoje nos estudos acadêmicos da tradução literária em todo o mundo, nem todos fora do Brasil conhecem a sua prática original, eu diria. De qualquer forma, a marca que vocês deixaram é inequívoca. Observando a atual produção poético-tradutória no Brasil, você reconhece o legado que deixaram? Você identifica linhagens de poesia e de tradução poética que dialogam (de fato, e não apenas tentam dialogar) com a obra de vocês? Ou você acha que a contribuição da poética tradutória do movimento concreto está necessariamente vinculada a um programa de vanguarda, algo que hoje inexiste?

 

Prefiro não emitir juízos sobre as traduções de outros, o que é sempre antipático. Mas poderia dizer que retomamos o veio da tradição transcriativa. Não são muitos os que a praticam, mas creio que existe uma consciência muito maior de que a tradução pode ser também uma arte e de que, como afirmava Pound, “a técnica é o teste da sinceridade”. Não faço citações nominais porque poderia desestimular ou injustiçar este ou aquele. A tradução de poesia tem uma tecnologia que pode  ser explicada, como eu disse, mas que é dificilmente bem praticada por quem não tenha “ouvido poético”. Algo que não se aprende. Nasce-se com isso. Gosto de lembrar a história contada por Ira, o irmão mais velho de George Gershwin. Ele, Ira, aprendia desde jovem, a tocar piano, sem muito brilho, embora com alguma competência. Um belo dia o pequeno George, que espionava o mais velho, meio às escondidas, sentou-se no banquinho e dedilhou com a maior versatilidade o piano. Ira ouviu. Caiu a ficha. Disse Ira: “Essa não é a minha…. É a do pirralho.” Mais adiante escreveu belos textos para as canções de George. O grande problema dos tradutores de poesia no Brasil, com relação à poesia do passado,  é que não sabem mais metrificar, e poucos têm “ouvido natural”  para o ritmo. Falo da maioria, com todas as exceções possíveis. Os abomináveis concretos, criticados acerbamente por terem decretado o fim do verso (que poucos ainda conseguem praticar), ainda sabiam…

Augusto de Campos: “LUXO” (1965), em versão de Hansjörg Mayer para Futura 9 (1966)
 

Quanto às diferenças entre a poesia concreta brasileira e a de língua alemã, que efetivamente existem, principalmente depois do que chamamos de período ortodoxo, elas se devem às diferenças contextuais. É notório que o Brasil passou, desde os anos 1960,  por alterações de ordem político-social que afetaram profundamente  a nossa perspectiva cultural, frente ao estabelecimento de uma ditadura militar que durou 20 anos, com muitos retrocessos e muita repressão. Por certo, há poetas que, mesmo indiferentes ao mundo real, conseguem praticar obras de valor. Este, porém, não era o nosso caso. Assim, nossa poética foi profundamente afetada pelos acontecimentos do contexto brasileiro, e tanto, que viemos a colocar, a partir de 1961, um adendo ao “Plano Piloto para Poesia Concreta”, de 1958. Uma frase que encontrei em textos de Maiakóvski : “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária.” O que visava expressar tanto a nossa nova posição estética, integrando a mensagem política ao poema, quanto  marcar a nossa divergência com as poéticas do realismo social, stalin-jdanovista, que pontificava entre nós. É claro que nem toda a nossa poesia passou a adotar  este gênero de intervenção literária, mas a resposta ao contexto político-social dos anos 1960 foi contundente. No mais, a poesia nos chamava a outros projetos de reflexão e aprofundamento experiencial, já que a poesia concreta brasileira, diferentemente do que aconteceu em outros países,  provocou um verdadeiro e duradouro trauma — houve quem escrevesse que ela equivalia literariamente  à “bomba de Hiroshima” — e era impositivo continuar a radicalizar as propostas estéticas que iniciamos e responder à pressão dos retrocessos contumazes que tentavam, consciente ou inconscientemente, contraditar as conquistas de novas linguagens e novos territórios poéticos.    

 

Tanto o legado antropofágico como o concreto-noigândrico preveem uma abertura para o novo, para o outro, para o estrangeiro e um conhecimento de si, uma afirmação do próprio. O que vem acontecendo no Brasil desde o golpe parlamentar de 2016, que culminou na subida ao poder de um desgoverno ubuesco sem precedentes, é justamente o oposto: o regime atual consegue ser ao mesmo tempo seletivamente xenófobo, genocida e autoexterminador, uma combinação rara, além de ter privado o país de sua soberania em muitos âmbitos. O engajamento ético-político presente em toda a sua obra, sempre norteado pela convicção de que não pode haver revolução sem forma revolucionária, tem se revelado nestes últimos anos sobretudo na sua presença nas redes sociais, por meio dos poemas publicados no Instagram, por exemplo. Como você acha que a poesia pode fazer jus, hoje, aos desafios de ordem ética (e também estética) com que estamos sendo confrontados? Você, o único dos poetas da vanguarda concreta a ter se apropriado das novas mídias em seu fazer poético (desde os clip-poemas da década de 1990, pelo menos), as reconhece como um veículo necessário? Qual seria o lugar da poesia em meio a um fluxo tão inapreensível de informação e a eixos de contato e comunicação tão descentrados e descentralizados? Como fazer e traduzir literatura universal em um mundo tão tribalizado?

 

Concordo integralmente com tudo o que diz sobre o atual governo brasileiro, que vem tentando, sistematicamente, minar a democracia,  notabilizando-se inclusive como um inimigo genérico da  cultura. Tenho, como nos anos 1960, premido pela minha consciência ética, voltado a fazer poemas de conteúdo político, para denunciar a atuação criminosa não só do governo mas de outros setores, como a área jurídica, sendo eu advogado de profissão, onde pontificam alguns setores retrógrados e de direita. Reconheço, porém, as dificuldades da poesia engajada para assentar-se em valores não contingenciais, como se pode ver na própria poesia de Maiakóvski. Parece-me particularmente difícil assegurar maior permanência a obras dessa natureza,  diante da precariedade de muitas de suas manifestações para se naturalizarem como “poesia”. Assim, um de meus denominados “contrapoemas”, em que me limito a transcrever um artigo da Constituição brasileira que proíbe a prisão de acusados antes de sua condenação em última instância. Tal dispositivo, que tentam desrespeitar, faz-se imprescindível, porém,  em países  como o nosso, sujeitos, ainda, a  golpes antidemocráticos de longa duração, como garantia contra o arbítrio judiciário e a perseguição política. Evidentemente, corro todos os riscos com textos como esse, ainda que eu possa me defender com o que eu chamaria de desconstrução duchampiana do academicismo poético. Em alguns poucos desses poemas terei conseguido o equilíbrio que julgo ter obtido em poemas como “Greve“  e “Luxo” dos anos 60 e 70, que me parecem ter sobrevivido com os “popcretos”, dois dos quais  acolhidos pelo MALBA, Museu de Arte Moderna de Buenos Aires.

 

Poema “Greve” (“Streik”), em tradução alemã de Simone Homem de Mello, na capa de "Poesie", antologia alemã de Augusto de Campos (Selo Demônio Negro, 2019)

Quanto às novas tecnologias de comunicação, que incluem a internet, entendo que são cada vez mais indispensáveis como recursos postos a disposição das artes. O público do livro de poesia é muito pequeno. A internet o ampliou muito. Por outro lado, essas tecnologias me permitiram incursionar no campo multimediático, tentando contribuir para a superação de poéticas que já esgotaram, pela própria excelência, os meios tradicionais. Trato de pôr em destaque a necessidade de assimilar ao poema valores menos frequentes — cinemáticos, auditivos, foto e tipográficos, musicais e artísticos — mas que lhe são consanguíneos, para levar avante a prática de um repertório mais exigente, de modo a enfrentar a degradação da linguagem artística surgida com a massificação informativa a que o mundo foi induzido em face dos problemas de superpopulação, mercadologismo e desigualdade social que vivemos.

 

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Augusto de Campos é poeta, tradutor, ensaísta, crítico de literatura e música. Em 1951, publicou o seu primeiro livro de poemas, o rei menos o reino. Em 1952, com seu irmão Haroldo de Campos e Décio Pignatari, lançou a revista literária Noigandres, origem do Grupo Noigandres que iniciou o movimento internacional da Poesia Concreta no Brasil. Em 1956, participou da organização da Primeira Exposição Nacional de Arte Concreta (Artes Plásticas e Poesia), realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Sua obra veio a ser incluída, posteriormente, em muitas mostras, bem como em antologias internacionais como as publicações Concrete Poetry: an International Anthology, organizada por Stephen Bann (Londres, 1967), Concrete Poetry: a World View, por Mary Ellen Solt (University of Bloomington, Indiana, 1968), entre outras. Sua obra inclui as coletâneas de poesia viva vaia (1979), despoesia (1994), não (2003) e outro (2015), além dos livros-objeto poemóbiles e caixa preta, em colaboração com Julio Plaza, publicados em 1974 e 1975, respectivamente. Traduziu poetas como os trovadores provençais, Anna Achmatowa, Dante Alighieri, Alexander Blok, Lord Byron, Jorge Luis Borges, Guido Cavalcanti, Hart Crane, e.e. cummings, Emily Dickinson, John Donne, Paul Fleming, Friedrich Hölderlin, Arno Holz, Gerard Manley Hopkins, Sergej Iessenin, James Joyce, Quirinus Kuhlmann, Wladimir Majakowski, Ossip Mandelstam, Marianne Moore, Christian Morgenstern, Boris Pasternak, Sylvia Plath, Ezra Pound, Rainer Maria Rilke, Arthur Rimbaud, Angelus Silesius, Kurt Schwitters, Gertrude Stein, Wallace Stevens, August Stramm, Dylan Thomas, Paul Valéry, William Butler Yeats, Marina Zwetajewa.

Simone Homem de Mello é escritora e tradutora literária. Durante seu período de vida na Alemanha (nas cidades de Colônia e Berlim), de 1993 a 2010, trabalhou como autora, dramaturgista, libretista de ópera, tradutora e redatora. Escreveu libretti para as óperas Orpheus Kristall (música: Manfred Stahnke, Biennale für Neues Musiktheater, Munique, 2002), Keine Stille außer der des Windes (Nem Silêncio senão o do Vento, música: Sidney Corbett, Bremer Theater, 2007), UBU – eine musikalische Groteske (música: Sidney Corbett, Musiktheater im Revier, Gelsenkirchen, 2012). Seus poemas em português estão reunidos nos livros Périplos (2005), Extravio Marinho (2010), Terminal, à Escrita (2015) e em antologias brasileiras e estrangeiras de poesia contemporânea. Como tradutora, dedica-se especialmente à poesia moderna e contemporânea de língua alemã e à obra do escritor austríaco Peter Handke. Coordenou, de 2012 a 2014, o Centro de Referência Haroldo de Campos no museu Casa das Rosas, onde hoje atua como pesquisadora de acervo. Desde 2011, coordena o Centro de Estudos de Tradução Literária do museu Casa Guilherme de Almeida. Suas publicações mais recentes são Augusto de Campos – Poesie (tradução para o alemão, 2019) e Haroldo de Campos Tradutor e Traduzido (coorganização, 2019).

 

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