Journale Comic TRADUZINDO MONSTROS
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TRADUZINDO MONSTROS

um diário nem tão diário

Diário: abril - julho 2021
Adendo: Segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Diário: abril - julho 2021

Terça-feira, 27 de abril de 2021

Hoje é meu primeiro dia de diário da tradução de Monstros.1 Estou traduzindo a graphic novel de Barry Windsor-Smith do inglês para o português. É um trabalho para a editora brasileira Todavia. Ontem recebi sinal verde da TOLEDO para iniciar meus registros.

Na verdade, comecei a tradução na semana passada. Hoje já estou na página 93. O processo ainda está no início, já que é um livro (desculpem) monstruoso. São 370 páginas de quadrinhos, carregadas de diálogos e com outras complexidades próprias. Vou falar de todas ao longo do diário. Talvez eu volte à primeira semana.

Como ia dizendo, comecei na página 93. Cheguei à 121. Comecei com uma cena de perseguição de carros em alta velocidade e tiros de metralhadora. Muitas onomatopeias e muitas decisões difíceis para o tradutor em relação a quais desses efeitos eu devia traduzir, quais eu posso traduzir e quais eu devia deixar como estão.

Entram em jogo questões técnicas: eu ainda não sei se esses efeitos foram aplicados na página em camadas digitais. Se foram, podem ser deletados com facilidade; se foram desenhados no papel, junto do resto da página, vou gerar horas de trabalho pesado para quem for fazer o letreiramento da tradução. Costuma ser melhor deixar as onomatopeias como no original não apenas por isso, mas porque muitos quadrinistas – e BWS é um deles – projetam a página usando esses textos desenhados como elemento de composição. Mas acontece que alguns são incompreensíveis para o leitor brasileiro. Gritos no inglês, por exemplo, são “EEEE”; fica melhor se forem traduzidos como “AHHHH” ou equivalente.

Vou tomar a maioria das decisões com relação a onomatopeias durante a segunda fase da tradução. Espero que aí eu já tenha essa informação quanto a elas serem desenhadas ou digitais. Mas apostaria que foram desenhadas no papel…

Monsters, página 91.

 

Da perseguição de jipes pulamos para cenas mais tranquilas e, em seguida, para diálogo intenso. Diálogos compridos, entrecruzados e cortados, uma pessoa falando por cima da outra. Um pouco de militarês, um pouquinho de teologia. BWS retrata um desses papos, o mais comprido – dois personagens conversando da página 114 a 121 – durante uma nevasca cada vez mais intensa. Ao longo de oito páginas, os flocos de neve ficam mais pesados e mais disseminados, contrastando com os balões de fala (que são vários). Só penso na entrevista em que BWS disse que não gosta de desenhar. Será que era mentira?

(Voltarei a essa entrevista em outros registros do diário.)

Hoje traduzi 28 páginas, digitei 15.745 toques válidos. Pegou um naco da minha tarde. Não traduzi uma ordem militar: “Hupp, two, hey!”. Não encontrei resultado na minha primeira tentativa de pesquisa.

 

Quinta-feira, 29 de abril

Ontem não trabalhei em Monstros. É o meu cotidiano de tradutor em tempo integral: não trabalho em um projeto de cada vez e em alguns dias me dedico  a outros projetos. Trabalho em projetos concomitantes desde meus primeiros anos de tradutor. Sei de outros profissionais da tradução, tanto da literatura quanto dos quadrinhos, que atuam do mesmo modo.

No momento, estou envolvido em três projetos: o livro de uma autora sueca chamado Glacier (traduzido do inglês); o segundo volume da adaptação para os quadrinhos de Sapiens, o best-seller de Yuval Noah Harari; e um projeto mais longo de tradução de todas as tiras dominicais de Peanuts, de Charles Schulz, para uma coleção em 60 volumes. No caso da última, já traduzi metade dos volumes. É um projeto que, no total, vai levar por volta de 18 meses.

Desde a última vez que abri o arquivo de tradução de Monstros, trabalhei na revisão de 52 páginas dominicais de Peanuts e terminei de escolher 160 tiras (das diárias) que farão parte de um volume especial (todas trazem Snoopy como “o Autor de Renome Mundial”); traduzi por volta de 30 páginas de Glacier; e umas 40 páginas de Sapiens. Também encerrei minha oficina online de tradução no LabPub – a última aula da segunda edição aconteceu na noite de terça-feira – e entrevistei dois quadrinistas para minha coluna de sexta-feira no site Omelete.

Nas páginas de Monstros que traduzi hoje, a trama volta a 1949, quando o protagonista era criança e seu pai finalmente retornou da Segunda Guerra Mundial. Alguma coisa deteve o pai na Europa durante anos após o final da guerra. Os personagens falam inglês caipira, embora não seja o sotaque sulista estereotipado de alguns gibis ou filmes. A história se passa em uma cidadezinha de Ohio, no nordeste dos EUA. Não sei se é um hillbilly state, mas os personagens falam um pouco de caipirês.

Não é fácil traduzir caipirês. Não só porque eu não devo usar o típico caipirês brasileiro (ou chicobentês), mas porque no original os personagens adoram encaixar damned ou goddamn no meio da frase. A estrutura para praguejar no português brasileiro é diferente. Eu tenho que repensar as frases para as imprecações soarem com maledicência equivalente.

Detalhe de Monsters, página 135.

É possível que eu esteja sendo influenciado pelo que sei da produção desse quadrinho – Monsters foi feito entre 1984 e 2019, ao longo de trinta e cinco anos – mas sinto que há páginas produzidas anos antes das adjacentes. Tem um trecho que eu tenho certeza de que foi feito nos anos 1980, pois é basicamente a mesma trama que a Marvel Comics usou em um gibi do Hulk (retorno à famosa questão do plágio em outro registro do diário). Essas coisas de bastidores ficam mais fortes com a entrevista de BWS no YouTube que assisti há uns dias.

Ah, sim. Essa mesma entrevista me fez entrar em contato com oito quadrinistas e perguntar se todos têm algum prazer em desenhar quadrinhos, tal como BWS diz que não tem. Reuni todas as repostas na minha coluna mensal no Blog da Companhia.

Nas páginas de Monsters de hoje, uma das personagens escreve um diário. Gostei do paralelo.

Traduzi trinta páginas em versão rascunho, cheguei na página 151. Dezessete mil toques no fim de tarde.

 

Sexta-feira, 30 de abril

Antes de começar a rodada de tradução de hoje, li a resenha de Paul Gravett sobre Monsters publicada no Times Literary Supplement. Gravett é um dos críticos e historiadores dos quadrinhos mais renomados do mundo, quem sabe o maior entre os vivos.

Tem um aspecto ressaltado por ele  que trata diretamente do meu trabalho como tradutor. Ele diz que BWS é “pynchonesco” nos diálogos. Não li quase nada de Thomas Pynchon, mas creio que o resenhista está referindo-se a diálogos entrecruzados, coloquiais e “bagunçados”, ou tentativas de retratar diálogos da vida real. Eu cogitei que fosse uma das metas de BWS, e é bom ver outro leitor corroborar que essa é uma abordagem estilística relevante. Vai ser importante para algumas decisões de tradução.

Ontem eu li outra resenha, no site A.V. Club, que também sublinha como as onomatopeias de BWS formam agregados de texto que podem funcionar como imagens. Só somou a minhas preocupações sobre tradução das onomatopeias. Na maioria dos casos, eu estou apenas copiando as palavras para o documento e acrescentando uma nota que diz “manter”.

As duas resenhas deram spoilers da trama. Ainda não li o quadrinho completo. Raramente leio quando estou traduzindo o primeiro rascunho. Consigo conviver com os spoilers, de qualquer forma.

Há uma personagem de segundo escalão chamada Eileen, tia do protagonista, que às vezes é chamada de “Ei”. Como isso vai soar estranho em português, estou pensando em mudar o apelido: pode ser “Lin”, quem sabe? Outra coisa para pensar até a hora da revisão.

Da página 155: Não é como se T. comandasse um tanque nem nada assim. Ele era só tradutor de alemão. Quanta coisa terrível ele teria visto sendo só tradutor?

Traduzi trinta páginas. Estou na 182. Vinte mil toques, levei quase a tarde inteira. Rendeu mais toques por página porque muitas eram de registros em diário.

Monstros, página 155.

 

Segunda-feira, 3 de maio

Há muitas páginas em Monstros com uma densidade de texto incomum para os quadrinhos contemporâneos. Os quadrinhos mainstream tinham essa quantidade de texto até mais ou menos os anos 1970 – redação desnecessária, descrições do que você via nos desenhos –, mas não com essas massas de balões:

Monstros, página 186.

Tem relação com o aspecto coloquial ou a algaravia que críticos comentaram (ver o último registro do diário). Há muitas enunciações supérfluas do ponto de vista de enredo ou do ponto de vista de informação que faz a trama avançar, mas contribuem para o aspecto de “falatório” que BWS aparentemente mira. Tem muitos “uh” (“hã” na tradução), muitas frases que param no meio, um jeito confuso de chegar aonde se quer chegar. É uma opção de estilo que a tradução deve transmitir.

Essas variações na densidade de texto por página são meu argumento para defender o pagamento por toques e não por páginas quando se trata de tradução de quadrinhos. A maioria das editoras brasileiras de quadrinhos – e estrangeiras, pelo que me contam tradutores gringos – prefere pagar um valor por página aos tradutores. Afinal, fica mais fácil apresentar o orçamento: traduzir o quadrinho de 100 páginas a R$ 10/página custará R$ 1000 à editora e pronto.

Eu defendo, sempre que posso, um valor por 2000 ou 2100 toques – que é o método usual para cobrança de tradução de prosa (2100 toques equivalem a uma lauda, termo antiquado da imprensa que equivale a uma página datilografada). Creio que seja mais justo para o tradutor e a editora: quadrinhos densos em texto – e, portanto, que exigem mais trabalho – deviam ter a tradução mais bem remunerada do que quadrinhos com menos texto. A Todavia, felizmente, aceitou pagar minha tradução de Monstros por toques.

Há uma menção a cópias carbono na trama e parei para conferir se essa tecnologia existia em 1949. Existia. Às vezes parece que BWS não pesquisou alguns aspectos, como automóveis, roupas e armamento para saber se são contemporâneos à cena. Eu acho que o linguajar norte-americano não é dos anos 1940. Esteja eu correto ou não, ele não é o primeiro autor que faz personagens falarem de modo contemporâneo em histórias que se passam em outras épocas. O que não é problema.

Estou oficialmente na segunda metade do meu rascunho de tradução. Traduzi até a página 200. Hoje cheguei a quase 14 mil toques.

 

Quinta-feira, 6 de maio

Hoje eu queria voltar a Monstros depois de três dias sem tocar no quadrinho. Mas foi um dia confuso, principalmente por causa de outros serviços com prazos mais apertados.

Mesmo assim, consegui trabalhar em 14 páginas e meia. Estou na 215. Muito diálogo entrecortado entre Janet Bailey e o policial Jack Powell.

Um dos trabalhos mais prementes foi conferir uma semana de notícias sobre quadrinhos para me abastecer para a coluna de amanhã no Omelete. Encontrei uma entrevista nova de BWS na NPR. Com uma informação pequena, mas de interesse:

O Monstro nunca foi 100% verbal. No início, eu o fazia grunhir com os outros. Os grunhidos ficaram nos balões [de fala] da arte por anos, e eu fiquei cada vez menos à vontade com esse aspecto tão “gibi”. Devido ao tempo de produção, que se alargou cada vez mais, o papel original onde desenhei amarelou e a cola que prendia os balões e os recordatórios se deteriorou a ponto de as colagens caírem de centenas, de centenas de páginas. O que não foi muito bom, fora eu ter notado que, como um balão de “grrrr” havia caído no chão, um quadro do Monstro de que eu nunca tinha gostado me pareceu melhor em silêncio.

E é por isso que o Monstro central de Monstros não fala.

Além disso, agora eu sei que provavelmente todos os balões, recordatórios e onomatopeias de Monstros foram colados fisicamente na página e não, como acontece com a maioria dos quadrinhos atuais, aplicados numa camada digital no Photoshop ou no Illustrator. Isso vai ser uma dificuldade a mais para quem for letreirar a tradução. E, da minha parte, eu não vou ter liberdade para pedir um balão maior que comporte diálogos mais longos – algo que seria mais fácil numa layer editável, mas que demanda mais tempo da pessoa que for letreirar  quando essa layer não existe – nem pedir que a maior parte das onomatopeias seja traduzida.

 

Segunda-feira, 10 de maio

Hoje, minha tradução ficou praticamente focada nisto aqui:

Essa pistolinha já apareceu na trama, mas cheguei em um ponto onde ela virou parte de um diálogo de duas páginas. Bobby recebeu uma dessas de presente do Guarda Powell. Janet, mãe de Bobby, tem uma pequena discussão com Powell a respeito da arma de brinquedo. Não porque ela pode ser perigosa ou educar de forma errada a criança quanto a uma arma, mas porque ela pensa que uma Spud Gun, ou “arma de batata”, é uma pistola que atira em batatas, não que atira (pedacinhos de) batata.

O problema de tradução está no fato de que eu não sei se esse brinquedo já foi difundido no Brasil. Se nunca foi, melhor para mim: posso chamar do que eu quiser, quem sabe acrescentar uma e outra frase que explique. O funcionamento da pistolinha faz parte do diálogo na cena, então eu não teria que acrescentar grande coisa. Se foi, então eu devia conseguir a referência certa para o nome com o qual a pistola era vendida no Brasil.

O Google não me ajudou nesse sentido. Meus amigos tradutores também não conhecem. Tentei o Twitter e um amigo que entende de armas. Saibam mais na sequência deste diário, amiguinhos.

(Também há uma referência a pea-shooter quando Powell está tentando explicar a spud gun a Janet. No Brasil, normalmente usamos uma palavra de origem árabe para pea-shooter: zarabatana. Mas, neste caso, eu preciso falar das peas, ou ervilhas, então ainda estou pensando em como batizar essa pea-shooter. Acho que não estamos acostumados a brincar com ervilhas, batatas e nem com comida em geral no Brasil devido ao nosso histórico de gente passando fome.)

Já passei da metade do livro, mas ainda falta bastante. Sempre que um serviço de tradução começa a passar de um mês, rola certa fadiga da tradução. Está acontecendo com Monsters – toda página que eu termino vira desculpa para conferir redes sociais, e-mail, qualquer coisinha em que eu possa procrastinar. Pode ser que eu esteja cansado desse trecho com a dança da galinha morta entre Janet e o Guarda Powell, um vai-não-vai sem fim. (E eu sei que não vai.)

Hoje foram dezenove páginas coalhadas de texto. Dezesseis mil toques. Faltam 140 páginas para terminar a primeira etapa da tradução…

 

Quarta-feira, 12 de maio

A trama finalmente andou. Segundo a última entrevista de BWS que eu li, a da NPR, acabei de traduzir a cena central do livro, aquela em torno da qual Monstros se desenvolveu: o jantar do Dia de Ação de Graças.

Não sei o quanto vou dar spoiler do livro, mas posso dizer que a cena termina com quatro mortos a tiros.

Tem muita conversa, muita onomatopeia, gente gritando, gente falando baixinho, gente falando outras línguas, gente falando errado e com sotaque, muito negrito e muito itálico. É uma ginástica louca pros dedos. Uma das páginas:

P. 253

‘allo, police! [manter]
phil! tom!
é uma emergência? [menor]
la police, ‘sil vous plaît! [manter]
não, isso não pode!
vou transferir, senhora. [menor]
tom!
obricada, depressa!
delegacia, balcão. [menor]

sim, eu precisa vocês rápido!
qual é a situação, senhora? [menor]
mon mari se bat contre-- [manter]
pode repetir, senhora? [menor]
é tudo culpa minha!

meu marrí está brigando!
então tá,
tom…
onde a senhora está?
perdão pelo minha língua, pode ripitir, por favorr?
você pegou aparto…
eu vou te estourar, pau d’água filho da puta!

e vai ser pela minha irmãzinha!

de onde a senhora está chamando? [menor]
je ne sais pas la rue! [manter]
{meu deus!}
non, je veux dire… [manter]
onde? qual casa? [menor]
bailey! tom bailey! [manter]
enviaremos imediatamente, senhora.

seu metido…
arrogante…

As marcações [manter] indicam que uma ocorrência de texto deve ficar como está. A personagem que fala francês vai continuar falando francês na minha tradução. A marcação [menor] sugere que o texto deve ser escrito em letra menor do que o padrão. Essas anotações ajudam a pessoa que vai letreirar. Ela evidentemente terá acesso às páginas originais e vai conseguir ver com os próprios olhos as características tipográficas de cada balão. Mas eu colaboro ao deixar essas marcações no documento de tradução – tanto para letreiramento, quanto para revisão, preparação, edição e assim por diante.

Hoje: vinte e sete páginas, só treze mil toques. Algumas páginas eram mudas.

Ontem e hoje eu também pude escrever e entregar um texto diretamente relacionado a BWS e Monstros para o Blog da Companhia, blog de uma editora em que tenho uma coluna mensal sobre quadrinhos. Baseado na afirmação de BWS de os quadrinhos são “uma profissão difícil de doer” e que ele não tem prazer em produzir quadrinho, entrevistei nove pessoas com uma pergunta só: Fazer quadrinhos lhe dá prazer? Sete são brasileiros com quem tenho acesso relativamente fácil; uma é Emil Ferris, quadrinista norte-americana cuja obra traduzi e que tive a oportunidade de entrevistas; e o último foi Walt Simonson, autor veterano citado explicitamente por BWS como colega que transpira prazer quando fala de produzir quadrinhos. “É aí que divergimos”, BWS diz na entrevista.

“Cada artista tem que descobrir seu jeito de chegar no que tenta alcançar”, Simonson me disse. “Seja lá o que o Barry faz ou precisa para atingir a meta, ele produz um material brilhante. E tudo isso em prol de quem ama suas histórias e sua arte.”

Meu texto está aqui.

 

Quinta-feira, 13 de maio

Quem nunca traduziu quadrinhos pode achar que o tradutor ou a tradutora trabalha na própria página de HQ, dentro dos balões. Ou, se não, como é?

Nós trabalhamos com o Microsoft Word e o que entregamos à editora é um documento de texto. Esse documento vai ser revisado pelo editor ou editora, por revisores ou revisoras, e vai chegar a um ou uma letreirista, que vai aplicar esse texto, aí sim, à página de HQ.

Os aspectos técnicos do meu trabalho são bastante simples. Nós, tradutores, criamos uma espécie de roteiro para quem vai letreirar. E não precisamos apontar cada quadro, a fala de qual personagem. Apenas anotamos a página e depois todas as ocorrências de texto, na ordem da leitura, como se vê no registro de ontem do diário.

A ordem de leitura costuma ser bem clara. É uma arte em si, chamada balonamento, que orienta seu olhar pela página. Existem profissionais de letreiramento que tratam exclusivamente de letras no quadrinho desenhado por outros, mas eu creio que BWS fez tudo sozinho em Monstros. E o fez de modo belíssimo, mesmo quando entupiu a página de balões.

Fora quando ele não é claro. Quer dizer: quando ele não é claro de propósito.

Monstros, detalha da página 262 com meus rabiscos.

Este é um trecho da página 262. Cada frase suscita um diálogo de cenas anteriores, e os balões estão intencionalmente dispersos, como se todos devessem ser lidos ao mesmo temo. É uma situação rara, bastante rara, eu ter que apontar no documento a qual balão eu me refiro. Desenhei os numerozinhos toscos com meu mouse, então não critique meu desenho à mão livre.

Um trecho do documento de tradução:


 1    o que há, senhor – algo de errado?
 2    por que ele não volta pra casa como os outros?
 3    ele está só um pouquinho agitado
 4    tipo o quê?
 5    esse é meu filho bobby
 6    eileen ronsadt é irmã do tom
 7    gentil guarda jack
 8    o senhor é do governo, sr. powell.
 9    eu ficaria perdida sem você, jack
10    eu não devia ficar no escuro
11    a que você mandou – eu comi no ônibus
12    eu sei que você não é major-coronel
13    eu amei cada minuto, sinceramente
14    eu estava tendo um sonho ruim
15    eu não quero de deixar, jack, mas eu tenho que voltar pro bobby
16    você ainda não me contou o que você disse
17    essas mulheres também estão esperando os maridos?

Hoje não tive muito avanço: só nove páginas, 5.700 toques. Mas essa página 262 tomou um tempo.

Também li a resenha de Monstros no Guardian: “Talvez seja inevitável, dado seu longo período de gestação e a ambição da sua amplitude, que Monstros pareça desconjuntada. A mistura de ficção científica, body horror, coincidências fatídicas, poderes mentais e drama familiar nem sempre tem coesão; às vezes os diálogos malogram”. Há alguns comentários ácidos contra o tropo do “negro mágico” e quanto ao clichê do nazista com a mão mecânica. Mas, no geral, é uma resenha positiva. O povo baba pela arte de BWS.

O que me lembra que eu ainda não vi o material em papel. Deve ser uma experiência muito diferente da de ler em PDF, como estou fazendo.

 

Segunda-feira, 17 de maio

Hoje:

─  Fiz a última conferência na tradução de um quadrinho francês em que trabalhei com um amigo (ele fez a maior parte) e mandei para a editora;
─  Traduzi 40 ou 50 tiras de Peanuts;
─  Fiz alguns retoques em um texto que estou escrevendo a convite de uma revista (e não sei como terminar);
─  Traduzi trechinhos a completar na tradução de um livro de 700 páginas porque a tradutora oficial não tinha o PDF certo quando fez o serviço e não tem como fazer esses complementos agora (é um dos projetos mais estranhos em que eu já me envolvi como tradutor);
─  traduzi parte de um artigo do New York Times para um amigo;

E então, às 17h, finalmente cheguei a mais uma rodada com Monstros.

Não tenho muito a informar, fora que dei bastante exercício para os dedos: muitas marcações quanto a texto maior ou menor, muitos negritos e itálicos.

Na verdade, tem uma coisa em que eu não parava de pensar enquanto traduzia as páginas de hoje e que não é exatamente problema meu.

A cena se passa na Alemanha, no finalzinho da Segunda Guerra Mundial, e algumas falas estão escritas em alemão. Parte dessas falas não é traduzida, mas parte é traduzida logo abaixo, em outro balão. Há uma explicação para esse recurso que tem a ver com a trama: um dos personagens que dá o ponto de vista é um soldado-intérprete. É como se nós estivéssemos ouvindo ele dar a tradução. Uma amostra:

Monstros, página 303.

A minha pergunta é: como a edição alemã vai lidar com esse problema? Claro que dá para fazer uma anotação no início da cena, tipo “Diálogo originalmente em alemão”. Mas, primeiro, você perde a intenção de que o leitor não entendesse aquilo por completo. E você pode me dizer que tudo bem, é uma perda aceitável na tradução – que acontece muito no cinema, por exemplo. Mas, no caso, o que os tradutores e editores alemães vão fazer quando tiverem, como na amostra acima, um balão de fala em alemão e um balão de fala com tradução para o inglês logo abaixo? Acho que não há jeito fácil de apagar os balões com o texto em inglês – não sem ter que desenhar ou finalizar a arte do que houver abaixo desses balões. Quem sabe vão pedir a BWS para redesenhar as páginas? Será que ele faria?

Em outras notícias: não consegui nenhuma resposta a respeito da existência de spud guns no Brasil, mas alguém me respondeu que existiam arminhas de brinquedo que chamavam de “apache” ou de “bang bang”. Foi o que me deu a ideia de chamar a arminha de “bang bang batata”. Boa aliteração para nome de brinquedo. (Também é o nome de uma receita na cozinha indiana, conforme uma pesquisa no Twitter.)

São 20h. Traduzi 33 páginas, 22.500 toques. Muitos desses toques são só diálogo em alemão que eu apenas copiei. Anotei que devia fazer algum comentário sobre as cenas compriiiiidas, à moda Tarantino, abarrotadas de falas. Talvez amanhã.

 

Quarta-feira, 19 de maio

Nada de muito novo no front. Fechei mais 32 páginas, mas só 13 mil toques. (Havia duas páginas “mudas” e três ou quatro quase mudas.) Restam menos de 40 páginas para terminar o rascunho da tradução. Estou confiante que vai ser esta semana.

Quando estou chegando no final, gosto de adiantar uma parte dos paratextos. Traduzi a biografia do autor e os textos da quarta capa.

 

Quinta-feira, 20 de maio

Deu certo. Terminei as 32 páginas que faltavam e acabei a primeira etapa da tradução de Monstros. É o rascunho.

O doc completo tem 211 páginas, 40 mil palavras, 225 mil toques. Como eu disse em um registro anterior, sou pago por lauda, que é mais ou menos o equivalente a uma página cheia de texto. A lauda geralmente é calculada em 2000 toques. Assim, a tradução de Monstros será de 112 laudas. Este é o conteúdo textual das 368 páginas de quadrinho.

Geralmente eu completo um projeto de tradução em três etapas: um rascunho e duas revisões. Provavelmente vou deixar o texto dormir uns dias antes de começar a segunda etapa.

Saiu uma entrevista inédita com BWS, hoje mesmo, no Guardian. Mas não sei se dá para chamar de entrevista, porque mais de metade tem as perspectivas do jornalista sobre Monstros e sua franca confissão de que BWS não respondeu várias perguntas. Quanto ao que o autor respondeu de fato, o jornalista diz: “As respostas tinham metade do tamanho das perguntas”.

Há algumas comparações com O Iluminado que eu não tinha pensado. É uma maneira de ver os elementos sobrenaturais, que me incomodaram um pouco.

 

Quinta-feira, 8 de junho

Faz mais de duas semanas desde a última vez em que eu abri o arquivo de tradução de Monstros pela última vez. Em parte, eu queria um respiro depois de encerrar o rascunho. Geralmente uma semana dá conta. Mas o que aconteceu foi que eu tive que, digamos assim, apagar incêndios em outros projetos de tradução – incluindo ajudar numa tradução para a mesma editora de Monstros. Era uma ajuda urgente e que interpretei como passe livre para deixar Monstros de lado por um tempo. Então, deixei.

Mas chegou a hora de retomar. Abri o arquivo, salvei com outro título – ericoassis-tradu-MONSTERS-revis.docx -, ampliei a visualização para 200%, deixei todas as linhas com espaço duplo e abri o quadrinho original (agora tenho uma versão finalizada, definitiva, em PDF) lado a lado no outro monitor. E comecei a reler tudo desde o começo. É o que chamamos de cotejo.

Na verdade, eu comecei o cotejo ontem, mas fiz pouco mais de 10 páginas. Hoje eu tinha mais tempo para dedicar ao livro e cheguei à página 42. No geral, estou corrigindo erros de ortografia, recuperando palavras que eu comi, colocando orientações (qual balão deveria ter fonte menor, qual onomatopeia esqueci de traduzir – ou que eu deveria ressaltar que não deve ser traduzida). Também é nesse estágio que preciso resolver algumas indecisões da tradução que não resolvi na primeira fase.

Monsters, detalhe da página 14.

Tem cara de jargão de piloto de helicóptero, mas eu não consigo encontrar uma referência garantida que me explique o que significa “up the pins”. Já entrei em contato com uma escola de pilotos brasileira, que encaminhou minha pergunta a um piloto brasileiro que mora nos EUA, que por sua vez encaminhou a pergunta a um piloto das antigas – pois eu expliquei que a cena se passava em 1963. Ninguém soube me responder o que significa “up the pins”. Vou ter que conferir com o autor, eu acho.

Em situações como essa, eu prefiro chegar ao final da tradução, reunir todas as perguntas que tiver e enviar um único e-mail com todas as perguntas. Essa é só a primeira de, assim espero, poucas. E sempre preciso cruzar os dedos para que o autor (ou a editora) façam a gentileza de me conceder uns minutinhos e responder.

Portanto, como falei, estou na página 42 do quadrinho, na primeira revisão. O documento de tradução tem 420 páginas e, segundo essa contagem, eu estaria na página 55. Então, acho que temos 10 dias dessa etapa pela frente…

 

Terça-feira, 9 de junho

Dei jeito em quase 80 páginas (na contagem do quadrinho) na segunda fase.  Umas dez não tinham texto algum, ou quase nada. Estou na página 121. Uma fatia boa do livro para um dia de trabalho!

Me pareceu que o piloto com quem entrei em contato a respeito de “up the pins” (ver o último registro) ficou muito interessado pela pergunta e procurou outros pilotos para perguntar. E ainda começou a pesquisar por conta própria no Google! Acho que ele conseguiu um avanço: talvez “up the pins” não seja um termo de pilotos, mas referência ao… boliche. Pins = pinos. Up the pins = pinos de pé. Seria uma expressão do tipo “vamos que vamos”, “pode tocar o barco”.

Também retornei a uma dúvida que não consegui resolver no esboço: “Hupp, two, hey!”, da página 121 (ver meu primeiro registro no diário). Conferi com um amigo que sempre ajuda outros colegas tradutores com militarês e ele me contou uma história nem muito curta nem muito longa sobre “hupp” e os vários usos que a palavra tem nas forças armadas. Mais uma para a lista de resolvidas.

 

Quinta-feira, 15 de junho

Está difícil voltar a Monstros devido ao aperto em outros projetos de tradução com prazo mais próximo. Mesmo assim, hoje consegui revisar umas 40 páginas. Mas não tenho nada extraordinário para informar.

 

Quarta-feira, 16 de junho

Dois dias seguidos, essa é nova. Trabalhei em 60 páginas e agora é certo que passei da segunda metade do livro na segunda etapa da tradução.

Travei em uma expressão na página 204, quando um oficial das forças armadas diz que seu subordinado hierárquico não deveria “go indian” em tal coisa. “So going indian on it seems out of line” é a frase. A impressão é de que o oficial está dizendo ao subordinado para não fazer alarde quanto a algo que o subordinado estava esperando e não vai acontecer. Não consigo encontrar uma definição de “going indian” ou de “go indian” que se encaixe nesse contexto. As definições que eu encontro são politicamente incorretas e ofensivas a indígenas. Entendo que BWS esteja sublinhando que o personagem é um veterano preconceituoso boca suja da velha guarda (a cena se passa em 1949). Mas não tenho certeza.

Tal como aconteceu com “up the pins”, alguns registros atrás, pode ser que eu tenha que perguntar ao autor. Se eu não tiver ajuda de uns colegas de tradução que consultei. Até agora, ninguém conseguiu ajudar…

Monstros, página 204.

 

Terça-feira e quarta-feira, 22 e 23 de junho

Pisei fundo para ir até o fim da segunda fase de tradução e consegui ler a metade final do livro. Acabei. Posso passar à última fase.

Esse é o meu processo normal de tradução. A primeira etapa, de esboço, é como uma tradução feita a toque de caixa, que não envolve muita pesquisa nem resolver palavras ou expressões difíceis. Deixo essas dificuldades para a segunda etapa, quando faço uma leitura atenta da tradução e confiro tudo que precisa de conferência, seja algo que precisa ser coordenado dentro do livro – como frases ou termos que se repetem – ou que precisa de uma conferência fora do livro.

Na primeira e na segunda etapas, sempre tenho o texto de partida ao lado do documento de tradução. O PDF está aberto em um segundo monitor (ou no iPad) adjacente ao monitor em que estou trabalhando (no Microsoft Word). Na terceira e última etapa, eu não trabalho com o texto fonte, apenas com o texto traduzido; releio a tradução revisada, de preferência em voz alta, e deixo-a fluente em português. É o que eu vou fazer na semana que vem. As fases consomem progressivamente menos tempo, então espero terminar a última em duas ou três levas (ou dois ou três dias).

Vale comentar nessa segunda etapa a versão revisada da página 262, de que eu falei no registro de 13 de maio. Agora, além dos balões de fala numerados, somei referências às páginas na qual cada fala foi dita anteriormente, de modo que eu, a revisão, a edição e quem for trabalhar no livro possam se coordenar caso haja necessidade de alterar o texto em um ponto e, consequentemente, no outro.

Monstros, detalha da página 262 com meus rabiscos.


 1    o que houve, senhor… aconteceu alguma coisa? [igual p. 180]
 2    por que ele não pode voltar pra casa que nem os outros? [igual p. 181]
 3    estou só um pouquinho confusa.[igual p. 205]
 4    tipo o quê?
 5    esse é o meu filho, o bobby
 6    eileen ronsadt é irmã do tom [igual p. 186]
 7    guarda amigo jack! [igual p. 189]
 8    o senhor é do governo, sr. powell [igual p. 181 – sem “sr. powell” no original]
 9    eu estaria perdida sem você, jack
10    eu não devia ficar às escuras. [igual p. 185]
11    a sua. eu comi. no ônibus. [igual p. 202]
12    eu sei que você não é major-coronel
13    eu amei cada minuto! é sério… [igual p. 213]
14    eu tive um sonho ruim! [igual p. 188]
15    eu não queria deixá-lo, jack… mas eu tenho que ir pra casa, pelo bobby. [igual p. 212]
16    você ainda não me disse o que você disse
17    essas mulheres estão como eu, esperando os maridos? [igual p. 202]

Tive que fazer a mesma coisa nas páginas 363 a 365 – as últimas páginas do livro – em que os balões são fragmentos de diálogos das páginas 235 a 237. Também encontrei inconsistências – frases que não estão idênticas nas duas páginas – e não sei se são inconsistências intencionais ou se BWS comeu bola.

Foi uma das perguntas que fiz (educadamente) ao autor – ou, no caso, a seu editor. Foi um e-mail que minha esposa olhou e disse: “é sério que você vai mandar um e-mail desse tamanho?”. Infelizmente, eu tinha que mandar. E não achei tão grande assim. Também perguntei a respeito de “up the pins”, a respeito de “going Indian”, aproveitei a oportunidade para perguntar sobre balões editáveis ou em camadas, assim como uma pergunta sobre as páginas 273 e 274:

Não é exatamente uma pergunta que afete a tradução brasileira, mas estou muito curioso quanto ao processo de tradução devido a outro projeto de pesquisa, então gostaria de entender: Há como cortar os balões com a tradução do alemão para o inglês, se necessário? Estou me perguntando quanto à eventual edição alemã de MONSTERS e como ela vai lidar com essas páginas. (Provavelmente extirpando as falas em inglês e acrescentando os símbolos “<>” às falas em alemão?)

Na verdade, eu tive que perguntar à editora, a Todavia, se poderia entrar em contato com BWS por meio deles. Eles me disseram para entrar em contato com a agente – com quem eu já tenho relação – e ver se ela podia conversar com o editor de BWS ou com o autor em si. Enviei o e-mail na quinta-feira; espero conseguir as respostas antes de terminar minha última rodada no texto e de entregar o livro à Todavia. Com sorte, até o fim da semana.

 

Domingo, 27 de junho

Não tenho trabalhado nos domingos, mas hoje abri uma exceção para conseguir uma boa vantagem na terceira etapa da tradução. E consegui: 140 páginas, quase um terço do livro. Foi um dos três nacos que eu planejei. Faltam só dois!

 

Terça-feira, 29 de junho

Três nacos em três dias, como eu tinha previsto. Ou melhor, três dias e um pouco mais. A tradução de Monstros está terminada, de acordo com meu processo usual de três fases.

Mas não está. As perguntas que eu enviei ao autor ainda estão pendentes e têm impacto em umas cinco páginas das 360 do livro.

Hoje enviei a tradução à Todavia e disse que podemos fazer as correções se e quando o autor responder. A editora está ciente do meu contato com a agente e está copiada em todos os e-mails.

 

Terça-feira, 20 de julho e depois

Faz três semanas desde meu último registro e desde que entreguei uma tradução quase final de Monstros à editora Todavia. A agente finalmente me deu retorno com as respostas do autor. Enviei as perguntas em 24 de junho. Esperar um mês por respostas de autor não é incomum.

As respostas de Barry Windsor-Smith, tal como transmitidas pela agente, são curtas, resumidas e todas terminam com “FAVOR DEIXAR COMO ESTÁ” em Caps Lock.

“Up the pins” é uma expressão entre pilotos de helicóptero que acho que ouvi em algum lugar, algum dia. FAVOR DEIXAR COMO ESTÁ.

“… going indian…”: Indian giver é um americanismo bem conhecido que se refere a alguém que lhe dá uma coisa e depois quer de volta. Este trecho trata de o governo ter concedido uma medalha ou homenagem à Sra. Bailey, mas revogado-a sem qualquer explicação, o que leva à situação incômoda para Jack quanto à Sra. Bailey. Creio que o termo se encaixa muito bem na personalidade de Jerry. FAVOR DEIXAR COMO ESTÁ.

Quanto às supostas inconsistências na página 262 e como elas reproduzem falas anteriores: “Sim, eu queria que elas fossem um pouco diferentes das elocuções originais. Afinal, elas são as memórias de Jack e não dados imutáveis. DEIXAR COMO ESTÁ.”

Há outras quatro respostas no mesmo tom. Ele não me respondeu quanto ao problema com a edição alemã. Imagino que fui muito intrometido de perguntar.

No dia seguinte, finalmente recebi um exemplar digital muito atrasado da Comic Book Creator, uma revista especializada em desenho de quadrinhos cuja 25ª edição traz 37 páginas sobre Monstros, incluindo uma entrevista inédita com BWS. A entrevista, na verdade, consiste em cinco páginas bem ilustradas, pois BWS não devia estar a fim de falar (tal como na entrevista com o Guardian citada antes).

A maior parte do texto da revista dedica-se a recontar os 50 anos de carreira de BWS; como Monstros começou como proposta para um gibi do Hulk que não foi aprovado devido ao uso de palavrões como “goddamn” [cacete] e “bitch” [vadia]; como essa proposta, que incluía artes, caiu nas mãos de outros autores da Marvel e que sua ideia central foi usada em um gibi do Hulk sem dar crédito a BWS; como BWS ficou fulo quando descobriu, muitos anos depois do gibi do Hulk sair, quando um jornalista comentou a situação com ele durante entrevista; e uma visão de dentro, da parte de um assistente de BWS, que tem como contar algo mais a respeito dos 30 anos de estrada que fizeram Monstros ficar engavetada, sair da gaveta, voltar à gaveta, sair da gaveta… e por fim ser encerrada e lançada como uma graphic novel de quase 400 páginas. A maior parte dessa história não vem da boca de BWS, porém.

Sempre é bom saber das origens de um projeto no qual eu sou tradutor. Às vezes, afeta a maneira como eu trabalho, ou me faz voltar e retrabalhar algumas palavras devido a outros significados. A reportagem da Comic Book Creator, por mais interessante que seja, não me levou a repensar ou modificar o que já havia traduzido, tal como fizeram algumas críticas que mencionei acima – que, na verdade, já adiantavam o que a CBC conta.

*

Apliquei poucas revisões à tradução e a reentreguei à Todavia. Agora, sim, está pronta.

Da minha parte, no caso. O texto de tradução vai passar por uma preparadora (a pessoa que vai fazer cotejo do texto com a tradução e buscar inconsistências, além de organizar o material conforme orientações da editora) e um revisor antes de chegar à letreirista, que vai aplicar a tradução nas páginas de HQ.  Depois, tem mais uma fase de revisão. Tudo será coordenado pelos olhos atentos de André Conti, o editor que me contratou para essa tradução e com quem trabalho há mais de dez anos. Ele pode entrar em contato comigo a qualquer momento do processo de edição. Geralmente não entra.

Monstros, na versão em português, tem previsão de publicação para algum momento de 2022, provavelmente na segunda metade do ano.

 

Adendo: Segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Mais de um ano depois do último registro, volto com novidades.

─  Não costumo ter contato com o processo de edição de um livro depois que entrego minha tradução. Monstros foi uma exceção. Após a preparação de Silvia Massimini Felix, a editora pediu que eu fizesse mais uma revisão do texto, aprovando ou não algumas alterações que a preparadora havia feito. Muitas diziam respeito ao uso do imperativo: eu havia usado muitos imperativos com conjugação na segunda pessoa – “tira os óculos!” e não “tire os óculos!” – porque me soam mais coloquiais e apropriados aos personagens. A preparadora considerou a conjugação correta – “tire os óculos!” – mais verossímil. Concordei com ela em algumas cenas e com alguns personagens, discordei em outras. O material ainda passaria por revisão e pela batida de martelo final do editor.

─  Também fui convidado a escrever o que a editora chama de aparatos: as orelhas e a quarta capa de Monstros. Uma orelha traz a descrição do livro, a outra é uma nota biográfica sobre Barry Windsor-Smith. Na quarta capa, escrevi um parágrafo de apresentação e busquei trechos de resenhas. Havia várias para escolher, então peguei trechos do New York Times, da Forbes, do Times Literary Supplement, do Guardian e da Paris Review.

─  Tive a oportunidade de conversar com Lilian Mitsunaga, a letreirista de Monstros. Mitsunaga trabalha com letreiramento ininterruptamente desde fim dos anos 1970 e já viu todo tipo de quadrinho imaginável. Inclusive de BWS, de quem ela falou que tinha uma fonte digital baseada na letra manuscrita. Para Monstros, porém, a editora licenciante pediu que fosse utilizada uma fonte digital comum da Comicraft. No mais, o único ponto incomum do processo – só em relação a outros trabalhos contemporâneos, não ao que ela já fez – foi a quantidade de balões, algumas onomatopeias e o “Lar DOCE Lar” na página 59. “Em quadrinho preto e branco, o trabalho tende a ser mais fácil”, ela me contou. Foram dois dias para ela apagar o texto de todos os balões e uma semana para encher os balões de novo. Lembrando que são 368 páginas. Mitsunaga é um avião a jato.

Monstros, detalhe da página 59.

─  Neste meio tempo, até onde consegui apurar, Monstros teve edições na Itália (tradução de Matteo Curtoni e Maura Parolini, Mondadori), na França (tradução de Marc Duveau, Delcourt), na Espanha (tradução de Francisco Pérez Navarro, Dolmen Editorial), em Portugal (tradução de Filipe Faria, G. Floy Studio) e na Alemanha (tradução de Jano Rohleder e Rowam Rüster, Cross-Cult). Tive contato com a edição alemã para tirar a dúvida quanto àqueles balões com tradução simultânea: a solução foi dividir as falas entre os balões, de modo que não há mais alemão acima e inglês abaixo como no original – apenas alemão. O leitor não “escuta” mais o soldado-intérprete traduzindo os nazistas. Também ouvi comentários de que a edição corrigiu o alemão deficiente da edição original.

─  A edição original de Monstros ganhou três prêmios Eisner, o mais famoso da indústria. Foram os de melhor roteirista/artista, melhor letreirista e melhor graphic novel inédita. É uma espécie de homenagem final a BWS. O editor que recebeu os troféus em seu nome declarou que esse é o último trabalho do autor.

Anúncio online de Monstros pela editora Todavia.

─  A editora Todavia preparou uma grande campanha para a pré-venda de Monstros. Há postagens como esta e esta no Instagram da própria editora, além de investimentos em canais de YouTube e Instagram sobre quadrinhos para vídeos sobre a obra e sobre a vida de BWS. O livro é considerado caro: R$ 149,90 no preço de capa (aproximadamente € 28 ou US$ 29), embora a edição brasileira seja, em termos cambiais, mais barata que a norte-americana (US$ 40) ou a alemã (€40). Há muxoxos dos leitores quanto à capa brasileira e quanto ao fato de a edição não ser em capa dura. Segundo a editora, metade da tiragem já foi vendida às livrarias, o que cobriu todos os custos de produção do livro.

Monstros, traduzido, sai em 8 de setembro de 2022, aproximadamente 500 dias após o início deste diário.

 

Revisão de Lielson Zeni

Fußnoten
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©Felipe Portugal

Érico Assis is a Brazilian translator and journalist. He translates French and English comics, fiction, and non-fiction for the main publishing houses in Brazil, such as Companhia das Letras, Panini, Todavia, and Darkside. He's also a free-lance comics critic for newspapers (Folha de S. Paulo, O Globo) and websites (Omelete), and co-creator of Notas dos Tradutores, a podcast about translation. He was the guest editor of some surveys of Brazilian comics, such as O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (Narval, 2015) and Brazil Comics Catalog (a collaboration with Brazil's Ministry of Foreign Affairs published in Portuguese, French, English and Spanish). He holds a PhD in Translation Studies, and is the author of Balões de Pensamento (Balão Editorial, 2020), a book of essays on comics.
www.ericoassis.com.br

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