Aterrissar os pés onde nunca havia pisado antes
Depois de três meses a caminho de sua jornada no espaço até a dimensão Chrono-Synclastic Infundibulum o poeta-astronauta Stony Stevenson estabelece seu primeiro contato com Mission Control. Enviado à estranha dimensão onde tudo se torna uma coisa só no tempo e no espaço, a missão do poeta é encontrar as palavras adequadas para descrever sua experiência neste “aleph” sideral. A bordo da nave Prometeus-5 quando é perguntado qual será seu primeiro poema, o poeta responde: bem, meu primeiro poema será uma sextina.
Acredito que muitos conhecem ou já leram uma sextina. Um poema que apresenta um dos sistemas estróficos mais difíceis da lírica no Ocidente. Ela é composta de seis sextetos e um terceto final, a coda. Utilizando versos decassilábicos, tem as palavras (ou as rimas) finais repetidas em todas as estrofes, num esquema pré-determinado em forma de uma espiral. Assim, as palavras (ou rimas) que aparecem na primeira estrofe, na sequência de versos 1, 2, 3, 4, 5, 6, repetem-se na estrofe seguinte, na sequência 6, 1, 5, 2, 4, 3. E se faz na estrofe seguinte a sequência 3, 6, 4, 1, 2, 5 em relação à estrofe anterior. E assim até a sexta estrofe, finalizando os sextetos. O terceto final, ou coda, tem, em cada verso, no meio e no fim, marcando as sílabas tônicas, as palavras (ou rimas) utilizadas no poema todo, na posição em que se apresentaram na primeira estrofe.
Após explicar o que é uma sextina, o poeta-astronauta afirma ter escolhido para a sua composição tirar seis palavras da frase dita por Neil Armstrong ao pisar na lua: “one” “long” “step” “for” ‘”man” “kind”. E assim termina a primeira parte do filme Between Time and Timbuktu, baseado na obra de Kurt Vonnegut e que foi ao ar em 1972 em um programa de televisão norte-americano. O próprio Vonnegut contribuiu com o roteiro e teria escrito a sextina que infelizmente não é mais mencionada no filme. Em uma de suas cartas, o escritor afirma inclusive estar trabalhando em uma sextina para o filme e ali assume estar diante de uma forma dificílima. Mas afinal o que não é difícil? ele pergunta.
A sextina foi inventada no século 12, depois disso a forma se popularizou e foi praticada pelos mais conhecidos poetas do Ocidente, passando pela Modernidade e chegando até o momento presente. Diante da simples menção de uma sextina, pensa-se logo que vou começar uma palestra sobre os medos e angústias ao traduzir uma sextina. Mas não. Não se preocupem: não se trata disso. As dificuldades e frustrações na tradução de uma sextina são imensas, mas não maiores do que qualquer outro tipo de tradução literária. A diferença é que, ao traduzir sextinas, sempre me atraiu o efeito que uma forma ao mesmo tempo permutável e flexível é capaz de causar no leitor de poesia. Ao considerar formas fixadas pela tradição não como objetivo em si, mas como meio ou material de composição, o que a sextina nos permite é sempre chegar a resultados inesperados através de um conjunto limitado de palavras. Um paradoxo da forma é que, embora pareça assustadora, na prática ela pode liberar a imaginação.
Mas porque sigo falando de sextinas? Além de compartilhar meu interesse pela sextina, gostaria de pô-la à prova como metonímia para o trabalho do tradutor. Gostaria de chamar a atenção para a sextina, pois talvez através deste exemplo de extrema formalidade da composição lírica seja possível tratar de questões que envolvem não apenas a sensitividade, ou melhor, a empatia e a alteridade, como também questões de afeto e contaminação na tradução.
É bastante conhecida a imagem evocada pelo poeta John Ashbery ao comparar a escrita de uma sextina com descer uma ladeira de bicicleta deixando que os pedais girem os pés do ciclista. A imagem me parece instigante, pois evoca em mim o prazer de se deixar levar pelo trabalho envolvido na tradução. Temos seis palavras diante de nós. De início, as conhecemos bem, uma sextina elegante deve ser feita com palavras acessíveis, mas logo elas ficam curiosas, engraçadas, estranhas, nos deixam inseguros. O que se passa ao entrarmos no reino da combinação e permutação, ao lidar com a constelação em si, primeiro como leitores e então como tradutores? Ao traduzir uma sextina, até que ponto o tradutor é levado, através de suas leituras, pesquisas, soluções, listas e provas pelos pedais do texto a aterrissar os pés em um lugar onde eles nunca haviam pisado antes?
Estamos cansados de saber que traduzir não consiste apenas na transferência do sentido original para outro idioma. Mas gostaria de acrescentar algo ao comentário de Judith Zander em seu texto „Um nova canção, uma canção melhor – traduzir com poesias“, ao comparar belamente a tradução com a patinação no gelo: o gelo por baixo de nossos pés não só parece ter se tornado ainda mais fino e escorregadio no contexto do debate sobre as traduções da poesia de Amanda Gorman, pois na verdade ele sempre foi finíssimo. O interessante, no entanto, é que a tomada atual de consciência da finura deste gelo sobre o qual já patina o tradutor há muito tempo torna também o ato de tradução mais urgente de debate e de visibilidade.
Também é fato indiscutível que a tradução lida com questões para além da transposição de forma e conteúdo, como por exemplo, com questões ideológicas de identidade, autoria e autoridade. Mas não é justamente através do questionamento da identidade e não na sua pura afirmação que a arte e a literatura se movem e nos fascinam? Ler, escrever e traduzir literatura está para mim relacionado justamente com esse mesmo movimento de aterrissar os pés onde nunca havíamos estado antes, com a possibilidade de questionarmos nossa posição e lugar no mundo e com a chance mais plausível de metermo-nos um na pele do outro, ou seja, trocarmos constantemente de lugar e ainda assim, neste processo, nos diferenciarmos. E tudo isso não através da semelhança, mas, na melhor das hipóteses, através da contaminação pela diferença, da saída de si e da incorporação do outro.
Quando penso no meu trabalho de tradutor, não penso apenas em destreza estilística. Mas também na consciência das implicações políticas e ideológicas de todo ato criativo e tradutório. Em como elementos constitutivos de um impulso poético me afetam, comovem e deslocam na leitura e então me levam a conferir e aceitar ou rejeitar a traduzibilidade e viabilidade dessa constelação de palavras em minha língua. E como lidar com essas palavras, caso, como comenta Marion Kraft em seu texto „Quem fala como pra quem e com quais palavras?“, suas conotações na língua de saída e de chegada não são congruentes? Quando entre o contexto de memória pessoal e coletiva que envolve o tradutor e o que envolve o autor há um fosso quase intransponível?
O problema é o que está fora da página e o que deu a essa seleção de palavras, essa disposição, essa escolha expressiva seu significado primordial no contexto original e o que vai determinar a minha transposição. Ou ainda: a memória escondida no uso destas palavras. Mas quando penso em congruências, a metonímia da sextina volta a parecer me dizer algo mais uma vez. Ora, não estaria embutido no próprio significado da conotação uma certa permutabilidade em relação ao contexto e circunstância em que uma palavra é usada? A repetição e permutação das palavras em uma sextina age como um fator multiplicador, ou melhor, um catalisador de sentidos. Já no caso das sextinas mais clássicas a permutação e repetição produzem tal efeito. Sextinas modernas e contemporâneas levam esta propriedade a um nível ainda mais radical. Gostaria de mencionar aqui como exemplo duas sextinas que traduzi para o português, nas quais os pares de palavras que estruturam o texto são feitos de homônimos e do desmantelamento de palavras-valise, criando deslocamentos e variações inusitadas em dois poemas cujo tema central é a metamorfose.
As sextinas foram escritas pelo poeta Jan Wagner. Uma delas trata de uma metamorfose de uma criança em uma lebre e a outra de um aprendiz ao aprender a modular uma xícara. Neste último caso, tanto o aprendiz quanto a xícara encontram-se em transformação. Olhemos mais de perto estes dois poemas e nos surpreendemos com a forma com que o poeta trabalha. No primeiro poema “Anna”, Wagner escolhe as seis seguintes palavras para a sua composição: “scharte” “mahlen” “händen” “weichen” “strich” e “haupt”. No segundo poema, “Die Tasse”, as palavras são: “tasse” “meister” “schale” “reif” “schlug” e “licht”. No entanto, não só a permutação cria novos contextos para estas palavras como elas mesmo (com exceção de “tasse”) vão se transformando ao longo do texto através de aglutinações de pré- ou sufixos, formação de compositos ou mesmo através das alterações permitidas pela homofonia e polissemia inerentes e até por equivocidades. Basta acompanhar uma das palavras – como “strich”, “scharte” ou “reif” – até a coda para notar e se deslumbrar com as possibilidades com que o poeta cria uma verdadeira constelação de sentidos com e entre esses dois conjuntos de seis palavras.
die tassen
die aufgabe war einfach: eine tasse
zu töpfern, die dem ehrwürdigen meister
gefiel. er war auf einer nußschale
von schiff in see gestochen, hatte reif-
lich überlegt, bis er den weg einschlug
nach asien, doch folgte seinem lichtins dorf des meisters, schlief in zwielicht-
igen kaschemmen, bis er eine tasse
geschaffen hatte, die ihm alles schlug
oder zu schlagen schien, was selbst dem meister
gelungen war, beinahe aus dem stegreif.
es war soweit. er hatte sich in schale[…]
as xícaras
a tarefa era simples: uma xícara,
modelar uma ao agrado do mestre
venerável. ele lançou-se em sua casca
de noz ao mar, refletiu até pronti-
ficar-se do caminho em seu batel
rumo a ásia e então seguiu sua luzà aldeia do mestre, dormiu ao lusco-
fusco de tabernas, até que uma xícara
modelasse, uma que tudo rebatesse
ou parecia rebater, mesmo as que o mestre
bem fabricara, uma que nascesse pronta.
chegara a hora. pôs-se na ponta dos cascos,[…]
anna
wir wußten alles über ihre scharte,
doch nichts von freunden oder von gemahlen,
nichts von den briefen unter ihren händen,
nach lilien duftend und mit einer weichen
schrift bedeckt, bis sie den umschlag glattstrich,
ein angelecktes präsidentenhauptin eine ecke klebte. wie uns überhaupt
nur eines interessierte: ihre scharte,
der kratermund, der dünne lavastrich
hinauf zum nasenloch; uns auszumalen
wie nachts die menschliche gestalt zu weichen
begann und wie sie schrumpfte, aus den händen[…]
anna
sabíamos tudo sobre seu corte,
mas nada de amigos ou de amores,
nada das cartas sob as suas mãos,
com perfume de lírios e a letra suave
que a encobria, até ela com um passe
alisar o envelope, lamber a testa do primeiro-ministro e a colar no canto. primeiro
interessava-nos apenas: o seu corte,
a boca de cratera, o delgado passo
de lava até a fossa nasal; imaginar rumores
da forma humana que à noite suave-
mente se desfazia e encolhia, as mãos[…]1
Diante destas duas sextinas, como buscar congruências para este jogo, sem que a parte e o todo se desfigurem, digam outra coisa, atuem de outra forma em uma língua que não dispõe de compostos e cujos homônimos se encontram em outro campo semântico, em outra forma de uso? Se a discussão sobre a tradução de um texto em uma língua sem marcação de gênero para uma língua em que o gênero gramatical somente pode ser definido de forma binária pelo masculino e o feminino é motivo para longos debates, o que dizer da tradução de textos em línguas nas quais há classificadores de gênero que atuam de acordo com forma, textura, dimensão, organização em conjuntos e em relação à suas funções sociais das coisas e seres no mundo, como é o caso de algumas línguas indígenas brasileiras como o Nahukwá Kalapálo? O conjunto, a combinação resultam de uma história de vida, de fatores históricos, étnicos e culturais. Como traduzir cantos xamânicos de cura altamente poéticos sem ignorar seu contexto social e religioso? Como tornar o respeito pelo lastro sócio-histórico-étnico-pessoal da linguagem de um autor sensível e visível na língua de saída?
Pensando agora, falar sobre tradução de sextinas seja talvez apenas uma via para adicionar no debate da sensitividade o problema da invisibilidade e da alteridade implícita ao tradutor. Traduzir também é revirar e remexer as palavras da própria língua, chacoalhá-las através de permutações, repetições, deslocamentos de contexto e leituras em voz alta como se assim pudéssemos tirar delas ou inscrever nelas outros sentidos, devolver ou dar a elas outros usos. É aqui que a metonímia da sextina mais se aproxima do ofício do tradutor. Tradutores estão familiarizados com conjunto de possibilidades em permutação e com a metamorfose dos sentidos.
E neste ponto “sentido” deve ser estendido também à sensitividade: a tradução não se faz somente de uma língua de saída a uma de chegada, mas também no encontro, indo ao encontro do outro. É a consciência e o respeito pelo lugar e pelo contexto das palavras do outro – apesar não me fazerem viver suas experiências e sua história – que me permitem encontrar em mim, na minha história e na minha experiência, a forma de traduzir aquilo que de início me afeta e me leva à tradução. Como tradutores sabemos das nossas limitações e desejo em apoderar-se da língua do outro, mas também devemos conhecer e respeitar as condições para transpor uma invenção ou uma sensação de uma língua a outra, assim como os perigos e privilégios de viver no limiar de contato entre línguas. Traduzir é para mim renunciar à ignorância envolvida em todo processo colonial de apropriação.
E talvez o mais bonito disso tudo sejam no final os rastros destes encontros no corpo do texto. Os rastros polifônicos da sobreposição e encontro de vozes. Pois este sim é o meu maior medo na tradução: de no ato tradutório tornar meu texto, a forma como ele afetou minha leitura e me deslocou, transparente e invisível. Pois que outra coisa me motiva a traduzir senão a possibilidade de ser outro sendo eu mesmo, de difundir e reinventar o que um original provocou em mim. A tradução domesticadora não gera somente a invisibilidade do tradutor, como também contribui para o desaparecimento dos contornos afetivos do original. Aparar suas arestas, borra seus ruídos necessários e nossas marcas como leitores.
Sim, meus medos de contato na tradução são os da invisibilidade. Com o apagamento da diferença e do contato com o outro na tradução. Que eu já não possa aterrissar os pés em algum lugar desconhecido e aprender algo. Se estamos nos movimentando na direção de uma poética tradutória da sensitividade? Não é essa também a tarefa do tradutor, que aliás nos diferencia das máquinas?