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Canibalismo

Quando criança, as ilustrações nos livros de História do Brasil assustavam, especialmente aquela xilogravura de Hans Staden (1525-1558), na qual o prisioneiro europeu em mãos ameríndias ilustrou sua descrição do ritual de ingestão canibal de inimigos entre os tupinambás. Era também este o propósito, assustar. Uma espécie de justificação cínica entre os cristãos para embasar seu próprio comportamento predatório contra os povos das Américas. Lembro-me, em 1994, quando estudava em Shreveport, Louisiana, nos Estados Unidos, de entreouvir duas professoras conversando sobre uma situação no escritório em que se encontravam entre as aulas. Um professor de História falava sobre a maneira terrível como os espanhóis haviam guerreado contra os astecas e os incas, as matanças e traições de acordos de honra como a que se perpetrou contra Atahualpa (1500-1533), rei inca, executado por Francisco Pizarro (1476-1541) mesmo após encher de ouro, até a altura de seu corpo, a sala onde se encontrava. A diretora da escola, que havia nascido na Espanha, ao escutar as críticas a seus antepassados, teria respondido: “Mas aquelas pessoas praticavam sacrifícios humanos!”. Lembro-me de ter pensado comigo mesmo, ao ouvir o relato, que não ocorria àquela senhora espanhola que seu povo também praticava sacrifícios humanos em nome de uma religião naquele mesmo período, através da Inquisição. A Europa seguiu queimando mulheres em fogueiras, sob acusação de bruxaria, até cerca de 1750. Eram sacrifícios humanos. Quanto à narrativa de Hans Staden, muitos antropólogos e historiadores hoje questionam a precisão de suas descrições.

Hans Staden: Holzschnitt aus seinem Werk "Hans Staden: Die wahre Geschichte seiner Gefangenschaft' Original Begleittext: tupinamba dargestellt in Kannibalistische fest beobachtet von Staden (orig. 1557).

Canibalismo entre cristãos nas Américas já foi registrado em situações terríveis e tais casos foram amplamente divulgados. Em 1846, a Caravana Donner acabou isolada e impedida de seguir em sua migração para a Califórnia ao redor do Lago Truckee, hoje conhecido como Lago Donner por conta da tragédia que ali transcorreu. Incapazes de transpor uma montanha, quase sem suprimentos quando cavalos e burros morreram na travessia do Deserto do Grande Lago Salgado ou abatidos por ameríndios em alerta contra os migrantes que invadiam suas terras, assim como na escolha errada de veredas e atalhos, algumas das famílias foram obrigadas a recorrer ao canibalismo para sobreviver. Um dos sobreviventes, Lewis Keseberg (1814-1895), um alemão como Hans Staden, mais tarde abriria um restaurante, num destes casos de humor mórbido em nossa existência.

Em 1972, um avião da Força Aérea Uruguaia que transportava 45 tripulantes, incluindo 19 jogadores de rugby, caiu nos Andes após colidir com um dos picos por erro do piloto. O nome do time era, em outro detalhe de humor mórbido, Old Christians Club. Dos 45, apenas 16 sobreviveram após as buscas terem sido abandonadas. Dois deles escalaram um pico e caminharam por 10 dias até encontrarem ajuda. Quando os sobreviventes foram resgatados, não tardou para que seu recurso ao canibalismo naqueles dias terríveis chegasse à imprensa, gerando debates sobre os possíveis limites e vedações morais da prática, que, no caso daquelas pessoas, estava longe de ser ritual. E, no entanto, um ritual religioso estaria envolvido. Sendo todos católicos, alguns temiam a condenação ao inferno se praticassem o canibalismo. Numa forma de racionalizar a necessidade extrema em que se encontravam, alguns compararam, para si mesmos e para os outros, o ato de comer carne humana à Eucaristia: a hóstia ingerida tal qual fosse o corpo de Cristo.

Em 2001, Armin Meiwes encontrou-se com Bernd Brandes para comê-lo, não na acepção brasileira que coaduna “comer” e “foder”, mas para literalmente comê-lo, ingeri-lo. Meiwes, conterrâneo de Staden, postara a requisição por um voluntário para o ato num fórum digital de pessoas com fetiches canibais. Não há por que entrar em detalhes aqui, mas Meiwes hoje serve sua pena de prisão perpétua. Detalhe de humor mórbido: o canibal nasceu em Essen, que sem a maiúscula inicial torna-se o verbo “comer” em alemão.

A situação de Armin Meiwes é muito distinta das que descrevemos entre os sobreviventes da Caravana Donner ou dos jogadores uruguaios nos Andes. Meiwes matou para comer, sem ter necessidade vital de recorrer ao ato. Parte de sua condenação se deu por encontrarem evidências de “gratificação sexual” no ato. Aqui, é interessante pensar mais uma vez na forma como os brasileiros associam “comer” e “foder”. Comer alguém, na linguagem coloquial brasileira, significa penetrar alguém com o pênis.

Brasilien: Kannibalismus in Brasilien 1557, wie Hans Staden behauptet. Stich von Theodor de Bry (1528-1598), c. 1562.

Nossa reação cultural a descrições de atos canibais é primordialmente a de nojo. Tal nojo tem características próprias: éticas, religiosas, morais. Na sua base, no entanto, está o nojo físico, que se mescla ao nojo espiritual, reação à imaginação de ingerir o vedado, o proibido. Grande esforço é dado à proibição de alimentos em certas religiões. E, em várias, mesmo o que se permite comer, quando se trata de um animal, precisa ser abatido de forma ritual e correta. Basta pensarmos nas noções de kosher e halal.

No seu livro Vampyroteuthis infernalis: um tratado, Vilém Flusser associa o nojo ao antropocentrismo, de certa maneira. Para ele, temos nojo daquilo que mais distante está de nós na linha evolutiva. O livro todo, um de meus favoritos, traça paralelos entre nós humanos, membros do povo Homo sapiens, e as lulas-vampiras-do-inferno, do povo Vampyroteuthis infernalis. A organização de nossos corpos, nossos comportamentos em terra e na água. No entanto, é preciso lembrar aqui: comemos polvos e lulas. Vários povos comem insetos. Eu próprio comi formigas no México. Na Bíblia, o profeta Elias sobrevive no deserto comendo gafanhotos. Apesar de tão próximos de nós, macacos são tidos como especiarias em certas culturas, mas como comida nojenta em outras. No Brasil mesmo, macacos são comidos com frequência pelos ameríndios mas não pelos luso-brasileiros. Chimpanzés comem outras espécies de primatas. Gaivotas comem pombas. Distância e proximidade na escala evolutiva não parecem definir diretamente o comestível. É claro que Flusser parece falar no livro de um nojo que quase poderíamos chamar de ontológico. Mas para comer algo, temos que superar o nojo ontológico daquilo. É impossível imaginar o Dasein da lula. Mas eu próprio comeria uma no almoço que se aproxima. Mas certamente não comeria a carne de um ser humano. E se precisasse disso para sobreviver? Não, não pensemos nisso.

Voltemos aos tupinambás do século XVI e seu prisioneiro alemão. Os ameríndios não dependiam da carne humana para sobreviver. A selva lhes dava aquilo de que precisavam. A ingestão de inimigos era ritual, e se dava em cerimônias extremamente festivas. Antes de ser executado e comido, o prisioneiro recebia a oferta de uma mulher do povo que o capturou para casar-se. O que ali acontecia era considerado uma honraria. Só se devorava o inimigo que se admirava. Após comido, o xamã falava em seu nome. Tornava-se o devorado. Aqui há um jogo entre EU e OUTRO extremamente complexo. Não à toa que o modernista Oswald de Andrade (1890-1954) se deixaria fascinar pela prática, escolhendo a data de devoração do bispo Pero Fernandes Sardinha (1496-1556) como a data de fundação do país.

Mas, assim como as práticas dos tupinambás do século XVI nos chegam escondidas sob camadas narrativas dos invasores europeus, cheias de interesses e agendas próprias, também se torna necessário hoje descascar as camadas posteriores que se acumularam sobre a Antropofagia   de Oswald de Andrade como movimento artístico, inspirada pelo quadro Abaporu (1928) de Tarsila do Amaral, e descrita no seu Manifesto Antropófago (1928), recentemente traduzido na Alemanha por Oliver Precht. Essas camadas, essas cascas sobre a Antropofagia primeva são críticas e artísticas, crescidas a partir das leituras e usos que dela fizeram primordialmente o Grupo Noigandres, ou, para clarificação no estrangeiros, o Concretismo, dos poetas concretos de São Paulo, especialmente na figura de Haroldo de Campos; e o grupo da Tropicália, os tropicalistas da Bahia radicados em São Paulo e Rio de Janeiro, especialmente na figura de Caetano Veloso. Poderíamos invocar aqui também o diretor de teatro José Celso Martinez Correa, que encenaria a peça O rei da vela (1933) de Oswald de Andrade com o Teatro Oficina em 1967. A Antropofagia já foi invocada ainda para compreender obras das artes visuais, como as de Hélio Oiticica, ou do cinema, como os filmes de Joaquim Pedro de Andrade.

Die berühmte Kannibalismus-Szene in Joaquim Pedro de Andrade's "Macunaíma" (1969),
basierend auf dem Roman von Mário de Andrade aus dem Jahr 1928, der kürzlich von Katrina Dodson ins Englische übersetzt wurde.

No caso do Grupo Noigandres, o que lhes interessava em primeira hora era a invocação de Oswald de Andrade como um autor minimalista e construtivista, a partir de seu uso genial do verso curto e sua inspiração nas técnicas de montagem do cinema para a composição poética. Não quero distorcer ou diminuir a importância do trabalho crítico de Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari em torno de Oswald de Andrade e sua recuperação crítica. Eles foram e seguem sendo fundamentais em várias frentes. Nosso interesse aqui é discutir como Oswald de Andrade parece mudar com as necessidades estéticas e políticas de cada período no Brasil. Além disso, a demão de tinta mais suntuosa e influente sobre a Antropofagia foi aquela aplicada pela Tropicália dos anos 1960. Vem muito do grupo tropicalista a noção mais aceita sobre a Antropofagia: a de que a cultura brasileira devora outras culturas, a começar pelas ameríndia, europeia e africana, para criar sua própria expressão original.

Desentranhar o que há de oswaldiano nisso é tarefa árdua, especialmente porque os tropicalistas agiam num momento histórico conturbado, de grande influência norte-americana, diferente da década de 1920 no Brasil e na América Latina, quando o diálogo mais forte se dava com os franceses. Uma das críticas que já se fez ao Tropicalismo é que, ao contrário dos tupinambás que consumiam os inimigos mais fortes, a influência da Pop Art e do Rock no Tropicalismo trazia ingredientes questionáveis para suas receitas canibais. O próprio Caetano Veloso relata em seu livro Verdade tropical (1997), que, àquela época, uma de suas grandes experiências estéticas era a visita a supermercados e a admiração do desenho industrial e publicitário. Muito dessa crítica viria de outro grupo, o Movimento Armorial liderado por Ariano Suassuna, que acreditava que a cultura brasileira já havia chegado a um amálgama original, e não precisava de novas influências, a seu ver questionáveis, dos norte-americanos. Mais uma vez, não pretendo distorcer ou diminuir a importância da Tropicália ou de um artista genial como Caetano Veloso, que em seu disco mais recente, Meu coco (2021), restabelece sua fé em muitos dos valores positivos do Modernismo brasileiro, que anda sob questionamentos legítimos em face das novas intepretações pós-coloniais sobre a cultura (ou culturas, prefeririam) do Brasil (ou dos Brasis, também como prefeririam).

Para as discussões estéticas e políticas de hoje, o que mais parece interessar é esse posicionamento e constante deslocamento de Oswald de Andrade entre o endêmico e o enxertado, o nativo e o invasor, trazendo a Antropofagia para o centro de uma discussão da Pós-Colonialidade. O antropófago cultural abandona consequentemente a pureza idealizada dos nativos e se lança na impureza das mesclas, ou se esconderia na Antropofagia um desejo decolonizador, por vezes insinuada numa apologia da infância e num quase primitivismo que não deixa de ter caráter  saudosista europeu, se pensarmos em figuras como Paul Gauguin?

Uma contribuição essencial para este debate foi feita recentemente por Eduardo Sterzi, por ocasião do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, no livro Saudades do mundo: Notícias da Antropofagia (2022). No ensaio “Antropofagia como máquina de guerra”, ele escreve sobre o que chamamos acima de deslocamento de Oswald de Andrade entre o endêmico e o enxertado, dizendo que ela “jamais se reduz a um dos polos, colocando em questão a própria polarização, escapando a qualquer identidade estável.” É por esse escape que Sterzi viria a conectar a Antropofagia à noção de Perspectivismo ameríndio, tal qual foi descrita por Tânia Stolze e Eduardo Viveiros de Castro. Nela, outros binômios se colocam em deslocamento e inconstância, especialmente os de Natureza e Cultura, mas também os de Humano e Animal, trazendo-nos de volta à questão do próximo e do distante nas noções de nojo em Vilém Flusser e na própria ideia o que é comer o outro ou o mesmo, fazendo de toda ingestão animal um ato de canibalismo, se seguirmos a descrição (que corre um risco de pan-indigenismo) da Cosmogonia ameríndia que postula uma espécie de humanidade em tudo o que vive.

Em nossos tempos de nova sanha por identidades constantes e estáveis, a Antropofagia e seu novelo de fios segue sendo uma meditação cheia de implicações necessárias.

 

31.05.2023
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©Paul Mecky

Ricardo Domeneck, nascido em 1977 em Bebedouro, São Paulo, vive e trabalha como escritor e tradutor em Berlim. Publicou nove volumes de poesia e dois volumes de prosa no Brasil até o momento e é editor da revista literária "Peixe-boi". Domeneck foi convidado para festivais em Buenos Aires, Barcelona, Bruxelas, Córdoba, Dubai, Ljublijana e Madri. Com uma combinação de leitura e performance, ele também foi convidado do Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro, do Museo El Eco na Cidade do México e do Museu Reina Sofia em Madri. Seu volume de seleção bilíngue "Körper: ein Handbuch." foi publicado em 2013 pela Verlagshaus Berlin.

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