TALKS TUPI OR NOT TUPI Das seduções do canibalismo e do parricídio
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Das seduções do canibalismo e do parricídio

Uma reflexão sobre a transmissão de conceitos-chave das duas vanguardas modernas brasileiras

Aqui se apresenta um trecho da trajetória de um conceito-imagem fantasiado desde a antiguidade grega e acentuadamente prolífico desde a invasão das Américas pelos europeus, no século XVI: o canibalismo. O trecho enfocado se estende temporalmente desde os relatos seiscentistas sobre a prática do canibalismo entre indígenas sul-americanos, passando pela formulação do conceito de "antropofagia" como uma técnica intercultural por Oswald de Andrade (1890-1954), no contexto do movimento modernista brasileiro nos anos 1920, e por sua reabilitação pela vanguarda literária concreta de São Paulo nas décadas de 1950 e 1960, até sua internacionalização mais sistemática no âmbito dos Estudos da Tradução a partir do final dos anos 1990. O que se pretende aqui não é um relato desses fatos e desse processo de transmissão, algo já realizado em diversas publicações, mas sim uma reflexão sobre as noções de identidade e de alteridade implicadas (e intrincadas) nos momentos-chave desse percurso e uma discussão sobre sua historicização como uma corrente pós-colonialista do pensamento sobre tradução literária.

Em nenhum momento se entrará aqui no mérito antropológico da prática ritualística do canibalismo por certas etnias amerindígenas, aliás praticamente exterminadas nos primeiros séculos da colonização. Não se entrará nesse mérito não só porque o registro dessas práticas provém dos colonizadores e não de seus praticantes, mas sobretudo porque os criadores e transmissores do conceito-imagem da antropofagia não tinham qualquer interesse etnológico pela compreensão desses rituais originários. Ou seja, o que aqui se quer acentuar é justamente a distância que separa a transmissão e transformação – por decupagem e delimitação metafórica e metonímica – desse conceito-imagem de qualquer realidade histórica do canibalismo e de qualquer função originária dessa prática pela etnia Tupinambá, entre outras.

O interessante na rápida proliferação dos relatos sobre culturas amerindígenas canibais na Europa seiscentista é que o testemunho ocular dos viajantes sobre uma prática que já povoara o imaginário mítico europeu em momentos anteriores acabou se tornando uma baliza demarcatória entre civilização (europeia) e barbárie (selvagem, novo-mundista), algo que por si só já legitimava a invasão do território recém-descoberto, a escravização de seus habitantes e a apropriação do continente e de todos os bens que ali se encontrassem. Na relação com o Novo Mundo,  a oposição estanque entre civilização e barbárie foi assimilada como um antagonismo entre "nós" e "eles", de modo que a identidade de um se fundava na total alteridade do segundo. As exceções a esse discurso — como os relatos de Jean de Léry (Histoire mémorable du siège de Sancerre, de 1574, e Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, 1578), assimilados por Michel de Montaigne em seu ensaio sobre os canibais ("Des Cannibales", 1595) e inspiradores de William Shakespeare na criação do personagem de Caliban em The Tempest (escrita entre 1610 e 1611) — confirmam a regra: a veemência com que Léry e Montaigne, remetendo-se às guerras religiosas que assolavam a Europa desde 1517, se voltam contra a imputação unilateral de barbárie aos povos extraocidentais e contra a exclusividade civilizatória autoatribuída aos europeus indicam que o discurso preponderante e hegemônico era justamente o que eles estavam combatendo.

De fato, difícil maior antagonismo do que aquele entre as atitudes dos amerindígenas canibais e dos europeus colonizadores diante do "outro".  Enquanto os colonizadores reconheciam a si mesmos, como detentores da civilização, em excludente oposição ao outro, os Tupinambá almejavam incorporar, corporificar as qualidades do outro combatido e dignamente derrotado em guerra. De um lado, uma identidade fundada na exclusão do que havia de humano (ou seja, de próprio) no outro; de outro, uma identidade que se fortalecia com a incorporação e, portanto, inclusão do outro. De um lado, o uso do outro com o foco em si; do outro, o uso de si com fome do outro.

(Aqui cabe um parêntese. É interessante notar que essas duas posturas contrastantes diante do outro também constituem uma dicotomia que perpassa o pensamento moderno sobre tradução. Friedrich Schleiermacher — sintetizando um debate da virada do século XVIII para o XIX — se refere às possibilidades de, por um lado, focar no que é próprio, trazendo o autor estrangeiro para perto do leitor da tradução, ou focar no que é alheio, levando o leitor da tradução até o autor estrangeiro. Quase dois séculos depois, a formulação de Schleiermacher é retomada por Lawrence Venuti, nos Estados Unidos, por meio da contraposição entre uma atitude "domesticadora" ou uma postura "estrangeirizadora" a ser assumida pelo tradutor, que haveria de optar entre reduzir o alheio a si mesmo ou ampliar o próprio para abarcar o outro. Sob influência dos pensadores alemães da virada do século XVIII para o XIX, Antoine Berman virá a defender, em sua teoria da tradução, uma prática tradutória que faça jus à alteridade e uma ética que valorize a especificidade irredutível do outro. Isso seria alçado pela tradução à letra, ou seja, pela consideração da corporeidade de qualquer texto no processo de tradução.)

Abb.1. Kolorierter Kupferstich in der Ausgabe von Theodor de Bry: Americae, 3. Buch, Frankfurt am Main 1592, Kunstbibliothek, Staatliche Museen zu Berlin. © public domain

Pouco mais de quatro séculos após a ampla propagação de relatos e imagens inquietantes do canibalismo testemunhado pelos europeus em certas partes do Novo Mundo, os iniciadores do movimento modernista no Brasil resgatam a prolífica imagem do canibalismo como uma metáfora para um modo soberano de assimilar a cultura dos colonizadores.  Acompanhando as vanguardas europeias na reabilitação do "primitivo" como valor de expressão moderna, os modernistas brasileiros se viram em um dilema. Talvez o Manifeste Cannibale Dada, escrito por Francis Picabia em 1920, com a evocação do poder da morte e com seus slogans niilistas, bem como a revista Cannibale, lançada por ele nesse mesmo ano, tenham até servido de inspiração aos artistas que viriam escandalizar o público de São Paulo na Semana de Arte Moderna, em 1922. No entanto, a Antropofagia brasileira, lançada como movimento a partir das pinturas de Tarsila do Amaral realizadas entre 1928 e 1930 e do "Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade, publicado em 1928, não poderia olhar para o "primitivo" do mesmo modo que os artistas europeus. Afinal, mesmo sendo descendentes dos colonizadores e tendo se formado como artistas na França e numa cultura francófila como a brasileira de sua época, eles estavam em solo antes habitado exclusivamente pelos povos assim-chamados "primitivos". Ou seja, o resgate do primitivo não significava a busca do longínquo, mas sim um mergulho (ainda que apenas simbólico) em sua própria ancestralidade. A elite intelectual e artística de São Paulo na década de 1920, em grande parte composta por descendentes dos primeiros colonizadores ou de imigrantes europeus chegados às Américas a partir do final do século XIX, acompanha a Europa na busca moderna do "primitivo", redescobrindo em sua própria história, no entanto, e não em terras longínquas, a soberania dos indígenas que não se deixaram subjugar e a rica e sutil resistência dos africanos escravizados. A apologia de uma cultura miscigenada, que torna o modernismo brasileiro um dos poucos a demonstrar um caráter nacionalista e não internacionalista, como é a tendência dos movimentos de vanguarda, constitui a base de resgate do "outro" "primitivo" em si mesmo. Embora seguindo os relatos europeus sobre o canibalismo amerindígena, sem uma relação imediata, portanto, com as culturas originárias, a Antropofagia simula o rito ancestral, à medida que se apropria do alheio dito "primitivo", buscando nesse outro uma identidade ampliada. Essa operação de identificação inautêntica só é possível por meio de um deslocamento irônico. Afinal, a Antropofagia canibalizou mais a América indígena do que a Europa pretensamente canibalizada, pois esta não só lhe era bem mais próxima (e própria), como também lhe forneceu o discurso (dos viajantes seiscentistas), o referencial (das vanguardas do início do século XX) e a ação (colonizadora) contra a qual ela reagiria belicamente (avantgarde, termo militar) como um "mau selvagem". (Neste contexto, vale lembrar que a bandeira da Força Expedicionária Brasileira, FEB, que participou da Segunda Guerra Mundial ao lado dos aliados na Campanha da Itália, a partir de 1944, era uma cobra fumando...) A identificação usurpadora (inautêntica) com a América (anterior a Américo Vespúcio), ou seja, a mãe-rica sobre a qual se fala ("matriarcado de Pindorama"), é o contraponto para a desidentificação (ou a devoração) do pai colonizador para o qual se fala ("Sem Napoleão. Sem César."). Enquanto a origem amerindígena se reduz a objeto do discurso do Manifesto, o colonizador europeu é o sujeito interlocutor, alvo e destinatário do Manifesto Antropófago, escrito do ponto de vista fictício daquele que não teria se deixado colonizar. Esse deslocamento irônico (porque diametralmente invertido) não é, no entanto, uma persiflage gratuita; ele representa uma transformação positiva do lugar de quem não é (nem uma coisa, nem outra, nem colonizador, nem colonizado) para quem o lugar de quem se torna algo entre. E é essa a verdadeira vocação do antropófago como tradutor.

(Aqui vale mais um parêntese. Sabe-se que o pensamento de Vilém Flusser dificilmente existiria como tal se ele não tivesse passado 31 anos de sua vida no Brasil. Depois de ter perdido a família no Holocausto, sua Praga de origem no exílio e consequentemente a possibilidade de se tornar um intelectual europeu, reencontrou-se no ambiente cultural brasileiro, onde seu deslocamento diaspórico possivelmente se harmonizou com o não lugar do intelectual de um país europeizado e crescentemente americanizado como o Brasil depois da Segunda Guerra, onde mais da metade da população era analfabeta (em 1940, o Censo indicava uma taxa de 56,8% de analfabetos). Sem ter sido de fato aceito pelo ambiente acadêmico de sua época, algo também vivido por Oswald de Andrade, Flusser criou sua obra a partir de um deslocamento bastante afim ao lugar do tradutor, o lugar de quem está entre. Segundo demonstra Rainer Guldin em seu livro Philosophieren zwischen den Sprachen Vilém Flussers Werk, o pensamento de Flusser é indissociável do lugar do sem-chão (bodenlos) que converte o "entre" em seu próprio espaço.  

"Quando começo a traduzir, é como se o chão real debaixo dos meus pés fosse diluir-se. O meu estar aqui se problematiza. O eu que sou, aquele eu que tem pensamentos, ameaça desintegrar-se, na medida em que esses pensamentos se formalizam e simbolizam. É uma espécie de alienação progressiva e disciplinada.."1

"[...] a possibilidade da tradução é uma das poucas possibilidades, talvez a única praticável, do intelecto superar os horizontes da língua. Durante este processo, ele se aniquila provisoriamente. Evapora-se ao deixar o território da língua original, para condensar-se de novo ao alcançar a língua da tradução".2

A ideia da oscilação, da suspensão e do salto voluntário sobre o abismo, a disposição de abrir-se para o nada, por fim, a imagem de um salto que apaga a origem (Ur/Sprung) constituem a medula das reflexões de Flusser sobre a tradução. Parêntese fechado.)

Mesmo sem se referir à questão da tradução, algo que será feito pela vanguarda subsequente, a Antropofagia oswaldiana abre um precedente na reflexão sobre a transmissão literária, sugerindo uma desierarquização das relações entre culturas dominantes e dominadas. Para tal, faz um uso metafórico da imagem da prática canibal ritualística amerindígena propagada pelas narrativas dos colonizadores, voltando-a contra os próprios colonizadores. A apropriação metafórica do canibalismo presente no Manifesto Antropófago, mesmo acompanhada de gestos contundentes de linguagem ("Tupi or not tupi, that is the question."), gera um discurso desprovido de corpo. Afinal, no que consistiria — em termos literários — esse ato antropofágico, fica em aberto. Os textos publicados na Revista de Antropofagia, editada entre maio de 1928 e agosto de 1929, não dão pistas exatas sobre a corporalidade dessa apropriação. Tanto que, sobretudo após o resgate da Antropofagia pela vanguarda literária concreta, nos anos 1950/1960, o conceito passou a circular amplamente como gesto retórico anticolonialista, como álibi para a apropriação adaptativa ou interpretativa de outras obras artísticas e como legitimação da estética da mélange, da mistura desierarquizadora e desishoricizadora de elementos e referências que originariamente não teriam qualquer relação entre si. A propagação aleatória do conceito revela, no entanto, uma constante. Trata-se daquilo que talvez mais distinga o pensamento antropofágico de Oswald de Andrade dentro do modernismo brasileiro, ou seja, a concepção de uma identidade cultural não essencialista, capaz de uma reversão e de uma desidentificação com qualquer origem, seja ela nativa ou colonizadora. Não é à toa que a forma de expressão mais contundente e marcante da poesia oswaldiana seja a paródia. É na paródia que o sujeito do discurso se coloca entre uma fala alheia, citada, pré-existente e o ato de fala inaugural de agora, que atribui ao citado uma função inteiramente nova. A contundência da ironia e da paródia oswaldianas foi o que a crítica hegemônica das quatro décadas que sucederam a Semana de Arte Moderna não conseguiu — ou se recusou a — entender, descartando sua produção literária como anedótica. A reabilitação de Oswald de Andrade como expoente do modernismo literário brasileiro ocorreria apenas com o movimento de vanguarda literária subsequente, o concretismo, nos anos 1950/1960. E é nesse contexto que a Antropofagia acaba sendo cooptada para a reflexão sobre tradução literária.

A afirmação de uma relação desierarquizada com a literatura europeia talvez seja o vínculo mais imediato entre Oswald de Andrade e a vanguarda concretista. Quando o Grupo Noigandres — criado por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos em 1952, ano de lançamento do primeiro número da revista homônima — incorpora Oswald de Andrade a seu cânon de autores inventivos e inovadores, integrado por Stéphane Mallarmé, Ezra Pound, James Joyce, e. e. cummings, para citar os mais relevantes — não se trata de uma declaração de influência, muito pelo contrário. O programa estético da Poesia Concreta, delineado em diversos textos e manifestos desde meados dos anos 1950 até a metade da década de 1960, resgata para o presente uma linhagem de autores que poderiam ser considerados seus precursores. A iniciativa de criar um novo cânon, inclusive redescobrindo autores ou certos segmentos de obras que haviam sido apagados pela historiografia literária precedente, é movida pelo impulso (poundiano) de reler o passado pela ótica das manifestações artísticas do presente, no caso, a Poesia Concreta, coinventada pelo Grupo Noigandres. Quanto ao resgate de Oswald de Andrade, o recorte (metonímico) de sua obra converge diretamente para o programa estético concretista. Em seus ensaios sobre o autor do "Manifesto Antropófago", Haroldo de Campos identifica em sua obra poética diversos procedimentos da poesia moderna postulados por Ezra Pound — como a condensação da linguagem, a composição ideogramática e a paródia —, além de outros diretamente relacionados à Poesia Concreta, como a visualidade, os cortes rápidos e a radical redução ao mínimo. Mas, de todos os gestos discursivos do Manifesto Antropófago, o que mais coincidia com os interesses da nova vanguarda era a afirmação de uma literatura de exportação, não meramente derivativa da literatura europeia. Se era difícil encontrar isso, de fato, no modernismo dos anos 1920, a Poesia Concreta — coinventada pelos brasileiros, a partir dos quais o movimento concretista se internacionalizou — talvez tenha sido o primeiro exemplo de concomitância e não sucedimento a movimentos literários europeus. A desierquização postulada e realizada pelos concretos se baseava na visão (poundiana) de que havia afinidades eletivas entre poéticas de invenção de todos os tempos e espaços linguísticos, sem necessidade de compartimentalização ou segregação. Convictos de que a linguagem da poesia é uma linguagem universal, independentemente da língua em que se manifeste, os concretistas brasileiros tornaram a tradução parte fundamental de seu programa estético. Ao postular e praticar uma tradução inventiva comprometida com a complexidade de recursos e efeitos poéticos do original, dedicada a criar em outra língua um texto como mesmo grau de elaboração estética, os poetas do grupo Noigandres igualaram a criação tradutória à criação poética, além de recriarem todos os autores de seu cânon e inúmeros outros clássicos, modernos e contemporâneos ao longo de suas vidas.

Mesmo antes de escreverem qualquer texto sobre sua concepção tradutória, os poetas do Grupo Noigandres passaram a publicar em livros conjuntos, a partir de 1960, suas traduções dos Cantos, de Ezra Pound, da poesia de Mallarmé, de fragmentos do Finnegans Wake, de James Joyce, e dos poetas russos modernos, para depois se dedicarem individualmente a textos de todos os tempos, desde os escritos bíblicos até a poesia contemporânea. O que inicialmente movia os jovens poetas de vanguarda era reivindicar uma nova forma de fazer e traduzir poesia, uma prática poético-tradutória que fizesse jus à materialidade e à concretude da linguagem. Embora a literatura brasileira já tivesse excelentes tradutores de poesia, a consciência da indissociabilidade de forma e conteúdo não era a tônica da maioria das traduções produzidas na época. Daí sua insistência em afirmar a novidade de sua forma de traduzir, algo que transparece nos termos cunhados para definir o seu fazer: tradução-arte, transcriação, outradução. Embora possa parecer (e tenha sido erroneamente propagado) que os poetas do Grupo Noigandres, ao postularem um novo programa tradutório, tenham feito traduções adaptativas, Nachdichtungen, o que ocorre na realidade é o contrário. Esse mal-entendido foi e continua sendo gerado pelo fato de que o discurso que eles produziram sobre tradução, inicialmente combativo e inflamado, acabou se disseminando bem mais do que suas próprias obras tradutórias. A noção de tradução poética da vanguarda concretista foi construída conjuntamente pelos três escritores do Grupo, mas acabou sendo mais teorizada por Haroldo de Campos. Enquanto o programa estético de tradução poética do Grupo, focado na consciência crítica da forma, já tenha sido praticado desde os anos 1950, apenas anos depois passou a ser teorizado, sobretudo por Haroldo de Campos. As obras tradutórias comentadas e publicadas por eles durante décadas revolucionaram a prática da tradução poética no Brasil, entusiasmando gerações de leitores, poetas e tradutores desde então. Paralelamente a isso, Haroldo de Campos, com seu espírito cosmopolita, sua atuação internacional e seu grande interesse em dialogar com interlocutores fora do Brasil, produziu continuamente — do início anos 1960 ao final dos anos 1990 — uma reflexão crítico-teórica sobre tradução poética que buscava associar as invenções da vanguarda concreta brasileira aos principais discursos teóricos e filosóficos contemporâneos. Para tal, envolveu-se com o pensamento de inúmeros autores, como Charles S. Peirce, Max Bense, Roman Jakobson, Walter Benjamin, Paul Valéry, Jacques Derrida, Henri Meschonnic, entre outros. Ao longo de suas reflexões, geradas sobretudo no contexto acadêmico em que trabalhou, ele continuou afirmando a mesma prática da tradução, enquanto ia atualizando seu discurso teórico, tendo feito verdadeiros malabarismos argumentativos para adaptar o horizonte estruturalista do início da sua obra para o contexto pós-estruturalista que dominou crescentemente o discurso teórico internacional. À medida que o mundo acadêmico foi se apropriando das suas teorias, ao longo das últimas três décadas, o discurso haroldiano sobre tradução se sobrepôs de tal modo à prática tradutória a que ele estava se referindo, a ponto de quase apagá-la. É daí que advém a imagem errônea, mas ainda existente, de que "transcriação" seria a criação de um texto "infiel" ao original. A associação direta demais da teoria da transcriação com a Antropofagia agravou ainda o cenário, gerando a imagem de que a vanguarda concretista brasileira praticaria uma tradução livre e adaptativa.

Abb 3. Text von Oswald de Andrade und Zeichnung von Tarsila do Amaral, abgedruckt in: Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, Maio de 1928, Faksimile-Edition, São Paulo 1975. © public domain

De fato, a associação da arte da tradução a um ato antropofágico à la Oswald de Andrade se deve aos próprios poetas de Noigandres. No livro Verso, Reverso e Controverso (1978), com traduções da poesia trovadoresca provençal e dos poetas metafísicos ingleses, entre outros, Augusto de Campos é o primeiro a afirmar que sua "forma de amar esses poetas é traduzi-los. Ou devorá-los, segundo a Lei Antropofágica de Oswald de Andrade: Só me interessa o que não é meu."  Três anos depois, Haroldo de Campos publica sua tradução de fragmentos do Fausto II, de Goethe, um livro em que formula, pela primeira vez, a chamada teoria da transcriação; nesse contexto, compara a arte da tradução com o ato primevo do assassinato do pai (referindo-se a Totem e Tabu, de Freud, um texto central para o Manifesto Antropófago); afinal, o objetivo da tradução deveria ser — como afirma hiperbolicamente Haroldo — superar o original e, por fim, substituí-lo. É nesse mesmo livro que ele associa a tradução ao sentido etimológico da "paródia" (canto paralelo), postulando uma semelhança isomórfica entre original e tradução, algo que permitiria a esta substituir aquele. E, em um ensaio posterior, ele se refere à "razão antropofágica" e assume uma postura mais explicitamente anticolonialista. Embora os poetas do Grupo Noigandres tenham se dedicado ao longo de um longo período à obra de Oswald de Andrade, é necessário dizer que a associação da tradução-arte ou transcriação à Antropofagia se deve mais a um ato voluntário dos concretistas em se filiar à linhagem oswaldiana, em parte a posteriori, do que uma autêntica influência. A Antropofagia oswaldiana certamente não foi uma referência central durante a formulação do programa tradutório dos concretistas; só depois é que passou a constar de um metadiscurso contextualizador da contribuição histórica da Poesia Concreta.

A identificação imediata demais de Antropofagia com transcriação se internacionalizou a partir da publicação do artigo "Liberating Calibans: readings of Antropofagia and Haroldo de Campos' poetics of transcreation", de Else Ribeiro Pires Vieira, na coletânea Post-Colonial Translation: Theory and Practice, organizada por Susan Bassnett e Harish Trivedi e publicada em 1999. Independentemente do mérito da autora em dar a conhecer, de modo aprofundado, o pensamento brasileiro sobre tradução literária no contexto dos Estudos da Tradução, esse artigo acabou criando uma ligação demasiadamente direta da Antropofagia com a transcriação (desde então bastante propagada em publicações internacionais, entre as quais o influente e competente Contemporary Translation Theories, de Edwin Gentzler, em sua segunda edição ampliada, de 2001), sob o risco de se apagarem, nesse imediatismo, as singularidades históricas das duas vanguardas brasileiras do século XX. De qualquer forma, o importante é termos em mente que a Antropofagia oswaldiana não se refere em momento algum à tradução literária e que a concepção de uma prática da tradução poética condizente com a materialidade do texto literário não se define, de modo algum, por uma apropriação programaticamente deformadora do original, muito pelo contrário.

Por fim, resta refletir sobre o poder sedutor da imagem do canibalismo, que — independentemente do ancoramento antropológico de seu uso — passou a transitar e evocar associações milenares. Ao adotar essa metáfora, despida de qualquer corporalidade ritualística originária, como simples imagem dissociada de sua origem e transmissora ou geradora de campos associativos próprios, Oswald de Andrade criou um discurso de soberania cultural que apontaria para direções dificilmente previstas por ele. Ao ser resgatada pela vanguarda concretista, a obra oswaldiana seria decupada e esse recorte passaria a valer — metonimicamente — pelo todo. Mas talvez tenha sido outra imagem arcaica, igualmente sedutora, a selar um pacto de sangue entre a Antropofagia e a transcriação: o parricídio. Na reflexão teórica que acompanha sua tradução de fragmentos do segundo Fausto, de Goethe, Haroldo afirma que "a tradução criativa, possuída de demonismo, não é piedosa nem memorial: ela intenta, no limite, a rasura da origem: a obliteração do original. A essa desmemória parricida chamarei de ‘transluciferação’", uma das citações mais recorrentes da teoria da transcriação. Também essa imagem corre o risco de se dissociar do corpo, da matéria das traduções poéticas realizadas por Augusto e Haroldo de Campos, sempre espantosamente próximas à letra do original. O parricídio consiste, na verdade, na soberania da tradução diante do original, que estaria sob ameaça de se tornar obsoleto diante da presença de um duplo tão autêntico. Não por se distanciar do original a tradução adquiriria a sua soberania, mas justamente o oposto: quanto mais idêntica ao original, mais irredutivelmente autônoma em sua alteridade ela se tornaria.

Decorrido certo tempo da transmissão desse jogo de deslocamentos metafóricos e metonímicos que marca o percurso dos conceitos de Antropofagia e de tradução-arte ou transcriação, o que passou a se esboçar foi a tentativa de retornar à corporalidade de uma suposta origem. As investigações sobre poética da tradução que se baseiam em estudos antropológicos, sobretudo nos de Eduardo Viveiros de Castro, tentam recuperar esse elo perdido. Por outro lado, coloca-se a questão de como dar a conhecer o que é a transcriação, a tradição de tradução poética adotada pela vanguarda concreta brasileira. Se pudéssemos retornar ao corpo dessa tradição, às próprias traduções, muitos mal-entendidos seriam evitados. Traduzir uma tradução? Sim, por exemplo: Haroldo de Campos retraduziu, ou seja, traduziu para o português a tradução de Sófocles por Hölderlin, do grego para o alemão. No ensaio que acompanha sua tradução de trechos da Antígone hölderliniana, Haroldo discorda da rejeição de Walter Benjamin à ideia da retradução, e insiste na autonomia estética da tradução, ou seja, no fato de que a tradução exitosa passa a ser um novo original. Nesse sentido, valeria a pena considerar uma antologia de traduções do Grupo Noigandres para outras línguas. Afinal, a noção de identidade que subjaz à tradução-arte é a da coexistência igualitária entre original e tradução, a mesma que levou o concretismo brasileiro a disputar um lugar de pioneirismo nos movimentos internacionais de vanguarda do século XX.

 

14.07.2023
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© Gabriela Pelosi

Simone Homem de Mello ist Autorin und Literaturübersetzerin. Sie lebte von 1993 bis 2010 in Köln und Berlin, wo sie auch als Dramaturgin, Librettistin und Redakteurin arbeitete. Sie schrieb Libretti zu folgenden Opern: Orpheus Kristall (Komposition: Manfred Stahnke, Biennale für Neues Musiktheater, München, 2002), Keine Stille außer der des Windes (Komposition: Sidney Corbett, Bremer Theater, 2007), UBU – eine musikalische Groteske (Komposition: Sidney Corbett, Musiktheater im Revier, Gelsenkirchen, 2012). Ihre portugiesischsprachige Lyrik ist in Périplos (2005), Extravio Marinho (2010), Terminal, à Escrita (2015) sowie in brasilianischen und ausländischen Anthologien gesammelt. Als Literaturübersetzerin widmet sich der modernen und zeitgenössischen deutschsprachigen Lyrik und dem Werk von Peter Handke. Von 2012 bis 2014 leitete sie das Referenzzentrum Haroldo de Campos im Museum Casa das Rosas (São Paulo), wo sie heute als Forscherin tätig ist. Seit 2011 leitet sie das Studienzentrum für Literaturübersetzung im Museum Casa Guilherme de Almeida (São Paulo). Von ihr erschienen zuletzt die Bücher Augusto de Campos – Poesie (zweisprachige Anthologie: Portugiesisch/Deutsch, 2019) und Haroldo de Campos Tradutor e Traduzido (als Mitherausgeberin, 2019).

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