“Carne de minha perna! Que foi, que foi?”
A tradução literária e o pensamento selvagem
Ao atingir a maioridade, conta a história que Macunaíma, brincando de transladar a casa de sua família de uma margem miserável para a margem fecunda e da margem fecunda de volta para a margem miserável de um rio, é apanhado pela cintura por sua mãe e levado para um campo distante, onde ele não poderia mais crescer. Expatriado e órfão, o personagem perambula então uma semana inteira até se deparar com a figura mitológica do Curupira, assando carne junto de seu cão, Papamel. Faminto, Macunaíma pede a Curupira algo de comer. A entidade corta, assa um pedaço de própria perna e a oferece então ao curumim, que a come e assim lhe pergunta pelo caminho de volta pra casa. No entanto, com a intenção de devorá-lo, Curupira explica-lhe um caminho falso, que por pura preguiça é ignorado pelo herói. Nisso a entidade monta em seu veado e inicia perseguição à sua presa gritando pelo pedaço de sua perna que, já na barriga de Macunaíma, responde sem cessar: “Que foi? Que foi?”
O episódio pertence a um dos momentos iniciais de Macunaíma. O herói sem nenhum caráter publicada pelo escritor brasileiro Mário de Andrade em 1928. O que pode parecer hoje uma composição nonsense ou surrealista faz parte de uma obra literária composta por mitos indígenas que o autor reuniu na forma de uma rapsódia incontornável para o modernismo brasileiro. Lida hoje ela não somente espanta pela brutalidade, humor e imaginação, como também por uma sugestiva sintomática das culturas no Brasil. Fugindo do Curupira, que em contos folclóricos costuma aparecer como guardião das florestas capaz de enganar caçadores devido aos seus pés invertidos (os dedos do pé para trás e os calcanhares adiante), com um rastro que não termina no local onde a presa se encontra, mas onde ela começou o seu caminho, a cena termina com Macunaíma vomitando o pedaço de carne da perna numa poça d´água, onde ela segue gritando pelo seu corpo, enquanto o herói finalmente consegue despistar ninguém menos que um demônio dos descaminhos.
Menciono este episódio porque justo ao pensar em pontos de contato entre tradução e antropofagia é esta a imagem que primeiramente me assalta, e é ela, com sua fantasia enigmática, que me parece ainda pouco explorada quando se trata de comentar o ato da tradução como um ato antropofágico. Lendo-a novamente me pergunto até que ponto ela não funciona em seus vários desdobramentos como um completo ato autorreferencial, ou mesmo como referência iluminadora para o que acredite estar no cerne da arte da tradução. Macunaíma não se encontra e transita somente no limiar entre maioridade e infância, como também na fronteira de diferentes mundos (humano, animal e mitológico), translada sua própria casa de uma margem árida para uma outra profícua e vice-versa e por fim incorpora parte do corpo alheio, mas não o digere, já que sua única forma de fugir deu seu algoz é regurgitar a carne de sua perna que o rastreia pela voz. Até mesmo a figura do canibal que o persegue, o Curupira, poderia ser lida como uma incorporação da prática textual da tradução, pois esta entidade não é só capaz de evocar a parte de seu corpo já apartado de si, como também, através de uma propriedade morfológica, inscrever seus rastros de forma inversa na linguagem da floresta, afastando assim o leitor de suas pegadas cada vez mais do encalço do original.
Além disso, a tradução se encontra nos fundamentos desta obra. É sabido que o autor desta rapsódia se valeu de textos diversos na sua composição. Não somente os escritos do etnógrafo e brasilianista alemão Theodor Koch-Grünberg, como também dos escritos dos irmãos Grimm assim como de reconhecidos etnógrafos brasileiros integram as bases intertextuais deste livro. Tanto nas cartas a seu amigo poeta Manuel Bandeira, como nos exemplares presentes na biblioteca do autor, é possível ler como o autor de Macunaíma extraiu, apropriou, transladou e incorporou escritos de diversas origens na criação de sua rapsódia. Ou seja, a tradução não só me parece evidente como base metafórica na criação e composição dos motivos deste episódio, como também pode e foi vista como ato de transgressão antropofágica. Não se trata de mera coincidência que o manifesto da antropofagia de Oswald de Andrade, composto por um método semelhante de colagem, tradução, transliteração e deslocamento da literatura e filosofia europeia e ameríndia, assim como um trecho de Macunaíma foram publicados no mesmo ano pela Revista de Antropofagia. Em seu projeto para uma “Bibliotequinha Antropofágica”, Macunaíma era visto não apenas como obra central, mas também como corpo gravitacional, ao redor da qual todas as outras obras literárias do passado, do presente e do futuro deveriam orbitar .
Relendo mais uma vez este episódio, repito pra mim a pergunta se há algo aqui que vai além da metáfora antropofágica associada à tradução, algo que se atualizaria na releitura e pudesse lançar novas luzes sobre a minha prática atual de tradutor. Pois, se uma poética antropofágica da tradução ainda segue, por uma questão de formação, incorporada no meu trabalho de tradutor, ela não me parece suficiente para explicar o que me inquieta e atrai hoje na arte de traduzir e a forma como entendo e pratico atualmente este gênero literário. A devoração e o parricídio do original, por exemplo, parecem terem alcançado o lugar de bustos conceituais empoeirados que pouco estão relacionados ou podem esclarecer o modo como me descolo e me movimento através de textos entre linguagens, culturas e mundos distintos. Talvez por considerar que a concepção e interpretação costumeira numa chave modernista brasileira da antropofagia e sua transferência a um projeto tradutório tenha se encerrado em si mesma e, numa obsessão contraditória com a superação do original, se enrijecido naquilo que ela mais queria evitar: uma forma de elitismo doutrinário. Ou talvez, o mais provável, por simplesmente ter me envolvido com formas de traduzir distintas, ter me deslocado de uma cultura a outra e ter expandido meus horizontes de tradução para além das fronteiras de um só programa.
Sim, talvez por isso volto a este episódio da maioridade de Macunaíma. Pois ali, vejo algo que se aproxima do meu desejo iniciais e atuais de tradutor, daquilo que me impulsionou a transladar de suas margens a minha própria casa, a ser levado a um descampado, a uma várzea ora fecunda, ora árida de sentidos, onde são os textos com os quais me deparo, estes sim, os que ameaçam a me devorar, e dos quais a única saída possível é encontrar para eles e para mim uma forma de tradução. Neste momento, o momento de contato com o texto a traduzir, é como se o único movimento possível neste cipoal inquietante fosse o de salvá-los ou arruiná-los de uma língua a outra. E neste processo é como se eu repetisse ou desse ao escritor argentino Jorge Luís Borges ainda mais razão sobre a relativização da estabilidade do original, sobre o fato de não haver um ou mesmo textos definitivos, somente esboços, tentativas e versões mais ou menos exitosas, sendo todas elas válidas e indispensáveis para a história da linguagem e da literatura. Creio ser isso o que me interessa e me parece o mais esclarecedor neste episódio de um dos mais conhecidos clássicos da literatura modernista brasileira, ou seja, não apenas o canibalismo evidente e ao mesmo tempo na chave-inversa daquele cunhado pela imaginação europeia – já que aqui não é o homem branco que corre perigo de ser devorado, mas o indígena. O que sobretudo me comove é transladar a própria casa a outras margens, e nisso ser expatriado e abandonado pela (língua) mãe à ingestão de um pedaço daquilo que me persegue e quer me devorar.
Isso sim, me parece próximo à arte da tradução que penso estar praticando. Uma arte que, sendo também postura e vida em movimento, seja capaz de evitar encastelamentos, seja capaz de saltar sobre a própria sombra, e que não trate de símbolos, mas de sintomas. Quando penso na minha prática como tradutor de poesia, principalmente se levo em conta tudo o que se encontra entre desejo e negociação desde que decido traduzir um texto até o momento em abandono meu resultado à publicação, penso no que disse Jack Spicer, sobre as palavras não serem o que adere ao real. Nós as usamos para empurrar o real, para arrastar o real para dentro do poema. Elas são aquilo no qual nos agarramos, nada mais. São tão valiosas em si mesmas quanto uma corda sem nada para ser amarrado. Na tradução, mais do que um antropófago, vejo diante de mim um funâmbulo entre duas margens, das quais uma delas já foi a sua casa, mas a partir do momento em que ele se lançou às cordas bambas da linguagem de si e do outro, deixou de ser.
É sobre estas cordas que me vejo com frequência tensionado pelo desejo de encontrar uma forma de ressonância da obra estrangeira. Uma ressonância daquilo que evoca o poema a ser traduzido. Um eco daquela voz que como no caso de Macunaíma levo assustado comigo. A voz de um pedaço de carne da perna de um poema. Pois nesta perna reside a maior estranheza e ao mesmo tempo familiaridade do todo o episódio. O inquietante desta perna indigesta é o que me permite arriscar um passo através da metáfora antropofágica e alcançar algo que para mim estaria mais na região escorregadiça do sintoma, ou melhor, de uma sintomática da tradução. Pois não estamos diante apenas de um simples pedaço de perna, mas de uma perna com própria voz, de um pedaço de perna, cujos pés são invertidos e nos confunde com suas próprias pegadas. No exercício da tradução seria ela sintoma da incorporação do texto alheio e estrangeiro? Seria sua voz o eco do chamado original que segue atuando na tradução? Em Macunaíma, pelo menos, esta voz entranhada é também a que localiza o pedaço de carne para o corpo que a evoca e, fazendo isso, o estranha através da pergunta “que foi? que foi?” E neste caso, esta pergunta entranhada e de estranhamento, parece funcionar como sintoma da indigestão e prenúncio do regurgito de uma linguagem. Uma linguagem que para mim envolve a maior tarefa e desafio da tradução: entranhar a forma sem estranhar o tom, designar o modo e não somente o designado. E tudo isso sem que seja necessário retornar ao original.
Em 1923, temporalmente não muito distante de Macunaíma, Walter Benjamin diferenciou no prefácio de sua tradução de Tableaux parisiens de Charles Baudelaire, o trabalho da tradução e da criação literária através da imagem de uma floresta de montanha. Segundo Benjamin, a criação literária atuaria no interior desta floresta da linguagem, enquanto a tradução estaria à sua margem, chamando o original para que adentre aquele único lugar no qual o eco é capaz de reproduzir na própria língua a ressonância de uma obra em língua estrangeira. Mas o termo de fácil compreensão e de uso frequente na língua alemã para designar uma floresta sobre uma montanha ou mesmo sobre uma escarpa, é traduzido para o português brasileiro e lusitano apenas por “floresta” e por “mata”. Subtraído assim de sua particularidade topográfica, a tradução omite não só o vínculo desta floresta com o poema Correspondência de Baudelaire, como também o posicionamento do autor com a teoria e prática de tradução de seu antípoda Stefan George. Neste prefácio, é justamente de George, reconhecido pelas suas traduções de Baudelaire e de Dante, que Benjamin procura se afastar diametralmente. Para o filósofo, as traduções de George adentram a floresta da linguagem, germanizando assim a Divina Comédia, enquanto o lugar da tradução ou do tradutor deveria se encontrar à sua margem. Só desta forma, diz ele, ela teria uma visão geral e distanciada, ou melhor, uma visão da totalidade da floresta da linguagem. Somente na distância da própria língua como na distância entre as línguas seria possível para Benjamin ocorrer na tradução uma integração entre línguas.
O que me interessa nesta passagem é que justo fazendo uso desta imagem selvática, Benjamin estabelece uma distinção clara entre o trabalho do tradutor e do poeta. E essa distinção não me parece somente válida e salutar no campo literário, como também confere à tradução o lugar de gênero textual próprio, capaz de abalar os fundamentos da linguagem e se distanciar de qualquer projeto ou estética nacionalista. Pois é justo a distância da própria linguagem, da própria cultura e do próprio mundo o que a tradução é capaz de propiciar. Cruzando este postulado com a cena de Macunaíma, acredito ainda ser possível derivar uma antropofagia da tradução que retorne ao gesto antinarcísico postulado pela antropofagia oswaldiana. Uma antropofagia não só feita de tradutores-poetas ou poetas-tradutores, mas também de tradutores em tradução, para os quais a incorporação do outro não implique em se perder no cipoal da própria linguagem, mas de encontrar uma forma de saída na linguagem alheia, distanciando-se com dedos para trás e calcanhares adiante da digestão domesticada.
E talvez um caminho para uma poética antropofágica de tradução seja o de considerá-la, como o fez Oswald de Andrade na criação literária, como forma de pensamento selvagem. Pois não somente o poeta é capaz de ver no pensamento em estado selvagem, ou seja, o pensamento humano em seu livre exercício, formas de criação literária. Também o tradutor, aquele sujeito que se encontra constantemente entre línguas, trabalha como um bricoleur num exercício não domesticado, em vista da obtenção de um rendimento de linguagem. Assim como o bricoleur complementa, continuamente e sem qualquer planejamento prévio, seus materiais acumulados através de resíduos, despojos e sobras oriundas de construções e desconstruções de linguagem anteriores, a obra resultante da bricolagem do tradutor também é composta de detritos e fragmentos, ou ainda nas palavras de Lévi-Strauss, de testemunhos fossilizados da história de um sujeito, uma sociedade e, acrescento, de sua linguagem, trazendo em si, como as construções monumentais, além da natureza de uma obra desconstruída, os sinais da próxima reconstrução, ou melhor, um inquietante “que foi?” dos poemas de difícil digestão sendo traduzidos dentro de nós.